Jornal Escolar AE Muralhas do Minho | 2024-2025
Errância e enraizamento
Ensaio | 18-09-2024
Manuel Alegre, exilado na Argélia, escreveu um ensaio intitulado Errância e Enraizamento, no qual traçou um fresco dos exilados e “estrangeirados” na história de Portugal.
Talvez toda a literatura nasça de um sentimento de exílio. Ou pela perda forçada da pátria, ou por se viver exilado dentro dela, ou, como diz Jorge Semprun, por se “ser estrangeiro no mundo”, o que, segundo ele, é “condição da emergência do humano” e, portanto, da própria literatura.
Há o exílio que provoca o desenraizamento. E há o que leva à redescoberta da raiz, ao voltar a casa, ao enraizamento. Eu creio que é o caso de parte significativa da literatura portuguesa. Uma literatura marcada pela errância e pela viagem. E por várias formas de exílio.
As navegações levaram o país a fazer-se para fora, a ser para fora. Viagem e mestiçagem, encontro e confronto com outros povos e outras culturas. O que produziu duas consequências culturais: a primeira – um novo olhar sobre o Mundo, a descoberta do outro e da diferença; a segunda – um novo olhar para dentro, uma reflexão crítica sobre si próprio, um processo de reenraizamento.
A primeira consequência origina uma verdadeira revolução cultural; é o “ver claramente visto”, de que fala Camões, o “saber de experiências feito”, que vai destruir dogmas, preconceitos, pôr em causa o saber livresco e autoritário, e abrir caminho ao nascimento da mentalidade científica. Mas também ao conhecimento do outro, à descoberta da diferença. Pêro Vaz de Caminha, na carta em que dá notícia ao rei D. Manuel do achamento do Brasil, elogia a beleza física dos índios e das índias mas também o seu comportamento afetivo, dizendo que eles “são mais amigos nossos do que nós deles”.
Camões, nas “Endechas a Bárbara Cativa”, um dos primeiros e mais belos poemas de amor antirracista, exalta a negritude, “a pretidão de amor”. Fernão Mendes Pinto, na sua Peregrinação, um título que simboliza uma História e uma literatura, narra a sua errância e as suas aventuras pelo oriente, destacando muitas vezes a superioridade das novas terras e novas gentes. Mas todos eles, a partir da sua errância e de um novo olhar sobre o Mundo, vão repensar Portugal e a sua condição de portugueses. E mais do que isso: vão fundar os alicerces de uma língua, de uma literatura e de uma identidade cultural.
O caso de Camões é o mais significativo. Ele foi um desterrado. Parte essencial da sua vida é uma vida de errância por Goa e por Macau. A sua obra lírica, nomeadamente algumas canções, contêm dos mais pungentes momentos de exílio da língua portuguesa. Mas Os Lusíadas, que são, porventura, o mais conseguido poema épico do Renascimento, são também, por excelência, o poema do enraizamento. Mais ainda: são um ato de soberania espiritual e literária. Escritos no desterro, nascidos da errância e do exílio, Os Lusíadas são, por assim dizer, um poema fundador: de uma língua, de uma literatura, de uma identidade. Não apenas porque o seu tema é a História de Portugal, a viagem de Vasco da Gama, a descoberta do caminho marítimo para a Índia. Nem só, porque ao contrário de outras epopeias, os seus heróis não são heróis míticos, mas, como sublinha António Sérgio, homens de carne e osso, sendo que o sujeito principal da ação é o próprio povo português. O que faz a grandeza deste poema é a coincidência que nele há entre a errância do poeta e a errância do seu próprio povo. O Professor Roger Bismut considera mesmo que se trata, em parte, de um poema confessional.
É por isso que Camões traz à língua portuguesa uma música nunca antes ouvida, nascida do seu próprio ser, da sua vivência, da sua viagem e da sua errância pelos “mares nunca dantes navegados”. E também uma mistura de alegria e tristeza, de deslumbramento e nostalgia, de ganho e de perda, que exprimem uma maneira de ser e que são, de certo modo, sentimentos de quem muito sofreu de viagem e de exílio, sem nunca esquecer a raiz.
Alegre, M. (2002). Arte de marear: ensaios. Dom Quixote.
“Nos perigos grandes, o temor é muitas vezes maior que o perigo.” – Luís de Camões