A lição de paciência
Um mandarim que se preparava para desempenhar um importante cargo
oficial recebeu a visita de um amigo que lhe foi apresentar as
despedidas.
Abraçaram-se e o amigo recomendou-lhe:
— Acima de tudo, no desempenho das tuas importantes funções, nunca
percas a paciência.
Prometeu o mandarim que nunca esqueceria este precioso conselho.
Três vezes repetiu o amigo a mesma recomendação, provocando o enfado do
mandarim. Quando se preparava para o fazer pela quarta vez, o mandarim
exaltou-se e gritou:
— Basta, eu não sou surdo e muito menos sou um imbecil!
Então o amigo, acalmando-o com a mão posta sobre o seu ombro, fez este
comentário:
— Podes assim ver como é importante ser paciente. Três vezes ouviste o
meu conselho, já não conseguindo dissimular o enfado. À quarta vez não
conseguiste controlar a fúria. O que acontecerá quando, no desempenho do
teu cargo, tiveres de ser verdadeiramente paciente?
O amigo baixou os olhos para o chão e limitou-se a suspirar.
J. J. Letria, Contos da China antiga. Ambar, 2002
O modo correto
Um monge instruído e muito devoto atravessava um rio de barco quando, ao passar ao lado de uma pequena ilhota, ouviu a voz de um homem que tentava, muito desajeitadamente, elevar as suas preces. O monge não pôde deixar de sentir alguma tristeza.
— Como é possível que alguém seja capaz de entoar tão mal estes mantras? Talvez o homem ignore que devem ser recitados com a entonação adequada, com ritmo e musicalidade precisas, e uma pronúncia perfeita.
Decidiu então ser generoso e, desviando-se do seu caminho, aproximou-se da ilhota para instruir o homem sobre a importância da correta execução dos mantras. Não era em vão que se considerava um especialista e aqueles mantras não tinham para ele qualquer segredo.
Quando desembarcou, pôde ver um pobre homem de aspeto sossegado entoando os mantras um pouco sem acerto. O monge, serenamente, dedicou algumas horas a instruir minuciosamente o indivíduo que, a cada momento, lhe agradecia efusivamente. Quando, por fim, entendeu que o sujeito podia recitar os mantras com uma certa competência, despediu-se dele, advertindo-o:
— E lembre-se, meu bom amigo, é tal o poder destes mantras que a sua pronúncia correta permite que um homem seja capaz de caminhar sobre as águas.
Mal tinha percorrido alguns metros no seu barco quando ouviu o homem a recitar os mantras ainda pior do que antes.
— Que horror! Há pessoas que são incapazes de aprender o que quer que seja, — pensou o monge.
— Senhor! — ouviu chamar uma voz muito próxima, atrás de si.
Ao voltar-se, viu o pobre homem que, caminhando sobre as águas, se aproximava do barco e perguntava:
— Nobre monge, já me esqueci das tuas instruções sobre o modo correto de recitar os mantras. Serias amável ao ponto de as repetir novamente?
Conto indiano
Duas cabras numa ponte
Uma ponte estreita ligava duas montanhas. Em cada uma das montanhas vivia uma cabra. Dias havia em que a cabra da montanha ocidental atravessava a ponte para ir pastar na montanha oriental. Dias havia em que a cabra da montanha oriental atravessava a ponte para ir pastar na montanha ocidental. Mas, um dia, as cabras começaram a atravessar a ponte ao mesmo tempo.
Encontraram-se no meio da ponte. Nenhuma queria ceder passagem à outra.
— Sai da frente! — gritou a Cabra Ocidental. — Estou a atravessar a ponte.
— Sai tu da frente! — berrou a Cabra Oriental. — Quem está a atravessar sou eu!
Como nenhuma delas queria recuar e nenhuma delas podia avançar, ali ficaram, enfurecidas, durante algum tempo. Finalmente, entrelaçaram os chifres e começaram a empurrar. Eram tão semelhantes em força que apenas conseguiram empurrar-se uma à outra da ponte abaixo.
Molhadas e furiosas, saíram do rio e subiram a encosta, a caminho de casa, cada uma murmurando para si: “Vejam só o que a teimosia dela provocou.”
Os dois homens sábios
Na antiga cidade de Afkar, viviam dois sábios. Cada um rejeitava e desprezava o ensino do outro. Um era ateu; o outro, crente.
Aconteceu-lhes, certa vez, encontrarem-se na praça pública e começarem a discutir e a argumentar perante os seus adeptos sobre a existência dos deuses. Depois de discutirem durante várias horas, cada um voltou para casa.
Na noite daquele mesmo dia, o ateu foi ao templo ajoelhar-se perante o altar e pedir perdão aos deuses pelos erros do passado, enquanto o crente queimava os seus livros e se entregava ao ateísmo.
Khalil Gibran (1883-1931)
Notas sobre finais de histórias
I
Era uma vez uma criança que
queria fugir, sair
de dentro dela.
E, ao evadir-se,
tornou-se adulta.
Nem todas as histórias acabam bem.
II
Há também adultos que são boas crianças,
por isso, há que meditar nos finais.
Sim, há adultos
falhados porque abandonam a sua infância
num deserto qualquer.
E há adultos completos porque
não têm finais.
Paz traz paz, Afonso Cruz.
Sobre o minério humano
Vi uma pedra que me pareceu uma pessoa.
Acontece muito,
mas ainda acontece mais
o contrário.
Paz traz paz, Afonso Cruz.
O tijolo bumerangue
Era uma vez um homem que andava sempre com um tijolo na mão. Tinha
decidido que, quando alguém o irritasse a ponto de ficar cheio de raiva,
lhe daria com o tijolo na cabeça.
Acontece que se cruzou com um amigo muito prepotente, que lhe falou com
maus modos. Fiel à sua decisão, pegou no tijolo e atirou-lho à cabeça, mas
ter que o ir buscar depois pareceu-lhe um pouco incómodo.
Foi então que o homem inventou o “Sistema Tijolo III”. O protagonista
continuava a ser o mesmo tijolo, mas, neste sistema, em vez de estar
atado a um cordel, estava atado a um elástico. Agora, o tijolo podia ser
lançado uma e outra vez e voltaria sempre para trás, como um bumerangue,
pensou o homem.
Quando saiu de casa e recebeu a primeira agressão, atirou o tijolo. Mas
foi um fiasco total: quando o elástico entrou em ação, o tijolo voltou
para trás e acertou-lhe em cheio na cabeça.
Voltou a tentar e levou novamente com o tijolo na cabeça, por ter
medido mal a distância.
À terceira, falhou por ter atirado o tijolo fora do tempo.
A quarta vez foi muito sui generis, porque, depois de ter decidido bater
na vítima, arrependeu-se e tentou protegê-la, acabando por levar com o
tijolo na cara.
Ficou com um enorme hematoma...
Nunca se soube porque é que o homem nunca conseguiu acertar com o tijolo
em alguém: se foi por causa das pancadas que levou ou se por uma
alteração no seu ânimo.
Todas as pancadas acabaram sempre por ser auto-infligidas.
Jorge Bucay. Deixa-me que te conte. (Adaptado)
Saiweng perdeu um cavalo
Saiweng significa Velho da Fronteira.
Um dia, Saiweng perdeu um cavalo. Os vizinhos visitaram-no para o consolar, mas
ele, que não estava preocupado, procurou acalmá-los:
— Quem sabe se a perda de um cavalo não será um bem?
Uns dias depois, o cavalo perdido regressou a casa do dono, acompanhado por uma
belíssima égua.
Mal souberam das novidades, os vizinhos tornaram a invadir a casa de Saiweng,
desta vez para o congratular. Mas Saiweng torceu o nariz, enquanto proferia:
— Deixem-se de festejos, se calhar receber uma égua nestas circunstâncias é
prenúncio de desgraça.
Não muito depois, o filho de Saiweng, que adorava cavalos, resolveu experimentar
a nova montada. Aconteceu que se desequilibrou, caiu e fraturou uma perna.
Mais uma vez, os vizinhos foram incansáveis. Rodearam Saiweng e o filho, para os
consolar.
— Lá estão vocês! — resmungou Saiweng, ao ver os ares de desgraça dos aldeões. —
Talvez esta queda traga algo de bom!
Quando rebentou a guerra e a violência estava no auge, muitos foram os jovens
recrutados na aldeia que acabaram por morrer às mãos do inimigo. O filho de
Saiweng, por ter ficado coxo, permaneceu junto do pai, o que lhe salvou a vida.
Contos da Terra do Dragão. Caminho, 2007.
O verdadeiro valor do anel
— Venho até cá, mestre, porque me sinto tão tacanho que não tenho
vontade de fazer nada. Dizem-me que não presto, que não faço nada bem,
que sou lento e estúpido. Como posso melhorar? Que posso fazer paro que
as pessoas me valorizem mais?
O mestre, sem olhar para ele, disse:
— Lamento muito, rapaz, mas não posso ajudar-te. Primeiro, tenho de
resolver o meu próprio problema. Talvez depois... — E, fazendo uma
pausa, acrescentou: — Se me ajudares, resolvo o assunto mais depressa e
talvez depois te possa ajudar.
— Com todo o prazer, mestre —gaguejou o rapaz, sentindo novamente que
estava a ser desvalorizado e que as suas necessidades eram adiadas.
— Bom — continuou o mestre, tirando um anel que trazia no dedo mindinho
da mão esquerda. Dando-o ao rapaz, acrescentou: — Pega no cavalo que
está lá fora e vai ao mercado. Tenho de vender este anel porque preciso
de pagar uma dívida. Tens de obter por ele a maior quantia possível e
não aceites menos do que uma moeda de ouro. Vai e volta com a moeda o
mais depressa que puderes.
O jovem pegou no anel e partiu. Assim que chegou ao mercado, começou a
oferecer o anel aos comerciantes, que o fitavam com interesse até o
jovem dizer quanto queria por ele.
Sempre que o rapaz mencionava a moeda de ouro, alguns riam-se, outros
viravam-lhe a cara e só um velhinho foi suficientemente amável e se deu
ao trabalho de lhe explicar que uma moeda de ouro era demasiado valiosa
para ser trocada por um mero anel. Alguém, desejoso de ajudar,
ofereceu-lhe uma moeda de prata e um recipiente de cobre, mas o jovem
tinha ordens para não aceitar menos do que uma moeda de ouro e rejeitou
a oferta.
Depois de oferecer a joia a todas as pessoas que se cruzaram com ele no
mercado, que foram mais de cem, e abatido pelo seu fracasso, o rapaz
montou no cavalo e regressou para junto do sábio.
Ele ansiava por uma moeda de ouro para entregar ao mestre e libertá-lo
da sua preocupação, de modo a poder receber finalmente o seu conselho e
ajuda.
— Mestre, — disse — lamento muito. Não é possível fazer o que me pedes.
Talvez tivesse conseguido arranjar-te duas ou três moedas de prata, mas
não consigo enganar as pessoas quanto ao verdadeiro valor do anel.
— O que disseste é muito importante, meu jovem amigo, — respondeu o
mestre, sorridente. — Primeiro, temos de conhecer o verdadeiro valor do
anel. Torna a montar no teu cavalo e vai ao ourives. Quem melhor do que
ele para nos dizer o valor? Mas não importa o que ele te ofereça: não
lho vendas. Volta com o meu anel.
O jovem tornou a cavalgar.
O ourives inspecionou o anel à luz da candeia, observou-o à lupa,
pesou-o e afirmou:
— Diz ao mestre, rapaz, que, se o quiser vender agora mesmo, não lhe
posso dar mais do que cinquenta e oito moedas de ouro pelo anel.
— Cinquenta e oito moedas?! — exclamou o jovem.
— Sim — replicou o ourives. — Eu sei que, com tempo, poderíamos obter
por ele cerca de setenta moedas, mas se a venda é urgente...
O jovem correu, emocionado, para casa do mestre, ansioso por lhe contar
a novidade.
— Senta-te, — pediu o mestre depois de o ouvir. — Tu és como esse anel:
valioso e único. E, como tal, só podes ser avaliado por um perito.
Porque é que vives à espera que qualquer pessoa descubra o teu verdadeiro valor?
E, dito isto, tornou a pôr o anel no dedo mindinho da mão esquerda.
Jorge Bucay. Deixa-me que te conte.
O concurso de canto
Um dia, chegou à selva um mocho que estivera em cativeiro e
explicou aos outros animais os costumes dos humanos.
Contou, por exemplo, que os homens qualificavam os artistas
por categorias, a fim de decidir quem era o melhor em cada área:
pintura, desenho, escultura, canto...
A ideia de adotar costumes humanos enraizou-se nos animais e, talvez por
isso, decidiram organizar um concurso de canto, em que se
inscreveram quase todos os presentes, desde o pintassilgo ao
rinoceronte.
Orientados pelo mocho, que aprendera muito na cidade, decretaram que o
concurso se resolveria por votação secreta e universal dos
participantes que, deste modo, seriam o seu próprio juiz.
E assim foi. Todos os animais, incluindo o homem, subiram ao palco e
cantaram, recebendo um maior ou menor aplauso da plateia. Depois,
anotaram o seu voto num papelinho e colocaram-no, dobrado, dentro de uma
grande urna, vigiada pelo mocho.
Quando chegou o momento da contagem, o mocho subiu ao palco improvisado
e, ladeado por dois velhos macacos, abriu a urna para começar a contar
os votos daquele “ato eleitoral transparente”, como ouvira os políticos
da cidade dizer.
Um dos anciãos tirou o primeiro voto e o mocho, perante a emoção geral,
gritou:
— O primeiro voto, irmãos, vai para o nosso amigo burro!
Fez-se silêncio, seguido de alguns tímidos aplausos.
— Segundo voto: o burro!
Desconcerto geral.
— Terceiro voto: o burro!
Os concorrentes começaram a olhar uns para os outros, surpreendidos no
princípio, depois com olhos acusadores e, por fim, ao verem suceder-se
os votos para o burro, cada vez mais envergonhados e sentindo-se
culpados pelos seus próprios votos.
Todos sabiam que não havia canto pior do que o desastroso urrar do
equino. No entanto, os votos, uns atrás dos outros, elegiam o burro como
o melhor dos cantores.
E assim aconteceu que, terminado o escrutínio, ficou decidido por “livre
eleição de um júri imparcial” que o desafinado e estridente zurrar do
burro era o vencedor.
E este foi declarado como “a melhor voz da selva e arredores”.
O mocho explicou depois o sucedido: a maioria dos concorrentes, com a
certeza de que iria ganhar, tinha dado o seu voto ao menos qualificado
dos concorrentes, aquele que pensavam não constituir qualquer espécie de
ameaça.
A votação foi quase unânime. Só dois votos não foram atribuídos ao
burro: o do próprio, que votara sinceramente na cotovia, e o do homem
que, claro está, votara em si mesmo.
Jorge Bucay. Deixa-me que te conte.
Fator comum
O meu avô gostava de beber.
O que mais gostava de beber era anis turco.
Bebia anis e acrescentava-lhe água, para o tornar mais fraco, mas
ficava bêbado na mesma.
Depois, passou a beber uísque com água e ficava bêbado.
E bebia vinho com água e ficava bêbado.
Até que um dia decidiu curar-se...
e desistiu... da água!
Jorge Bucay. Deixa-me que te conte. Pergaminho.
O céu e o inferno
Um velho e sábio mandarim teve um dia o privilégio de visitar o
outro mundo.
Primeiro visitou o Inferno. Surpreendentemente, era um lugar
lindíssimo, cheio de jardins, de aves raras, de lagos azuis e
montanhas douradas cujos cumes brilhavam ao sol.
Conduziram-no a um palácio maravilhoso onde, numa esplêndida sala de
jantar, eram servidas aos comensais as mais deliciosas iguarias,
confecionadas com arroz. No entanto, todos tinham um ar famélico e
infeliz. E o velho mandarim compreendeu porquê, quando reparou que, para
se servirem, usavam pauzinhos com dois metros de comprimento, com os
quais não conseguiam levar a comida à boca.
Angustiado com o espetáculo, pediu que o conduzissem rapidamente ao Céu.
Aí, surpreendido, verificou que a paisagem era idêntica à do Inferno. E,
num belo palácio, em tudo semelhante ao primeiro, encontrou o mesmo
banquete, preparado com as mesmas iguarias. No entanto, o rosto das
pessoas tinha uma expressão tranquila, saciada e feliz, o que o
surpreendeu, pois, para comer, utilizavam os mesmos pauzinhos com dois
metros de comprimento.
Observando melhor, notou então que cada comensal, com os seus pauzinhos,
dava de comer à pessoa que se encontrava sentada à sua frente, do outro
lado da mesa.
Marian Wright Edelman. I can make a difference. Harper Collins Publishers. (Adaptado)
Um homem
Eu queria que os outros dissessem de mim: Olha um homem! Como se diz: Olha um cão! quando passa um cão; como se diz: Olha uma árvore! quando há uma árvore. Assim, inteiro; sem adjetivos, só de uma peça: Um homem!
Almada Negreiros, Obras completas.
Os outros seis
Diz a tradição que há alguns anos existiu num país longínquo um mocho que por força de tanto meditar e queimar as pestanas a estudar, a pensar, a traduzir, a dar conferências, a escrever poemas, contos, biografias, críticas de cinema, discursos, ensaios literários e algumas outras coisas, chegou a saber e a tratar praticamente tudo em qualquer género dos conhecimentos humanos, de forma tão notória que os seus entusiastas contemporâneos depressa o declararam um dos Sete Sábios do País, sem que até à data tenha sido possível averiguar quem eram os outros seis.
Augusto Monterroso, A ovelha negra e outras fábulas.
Uma história de amor impossível
Conta a lenda que uma jovem mariposa, de corpo frágil e alma sensível,
voava ao sabor do vento, certa tarde, quando viu uma estrela muito brilhante e se apaixonou.
Excitadíssima, voltou imediatamente para casa, louca para contar à mãe que tinha
descoberto o que é o amor.
— Que bobagem! — foi a resposta fria que escutou. — As estrelas não foram feitas
para as mariposas voarem em torno delas. Procure um poste ou um abajur e
apaixone-se por algo assim. Foi para isso que fomos criadas.
Dececionada, a mariposa resolveu ignorar o comentário da mãe e permitiu-se ficar
de novo feliz com a sua descoberta. “Que maravilha poder sonhar,” pensava. Na
noite seguinte, a estrela continuava no mesmo lugar e ela decidiu que iria subir
até ao céu, voar em torno da luz, e demonstrar o seu amor.
Foi muito difícil ir além da altura a que estava acostumada, mas conseguiu subir
alguns metros acima do seu voo normal. Entendeu que, se cada dia progredisse um
pouquinho, acabaria por chegar à estrela.
A mãe estava cada vez mais furiosa:
— Estou muito dececionada com a minha filha — dizia. — Todas as suas irmãs,
primas e sobrinhas já têm lindas queimaduras nas asas, provocadas por lâmpadas!
Devia pôr de lado esses sonhos inúteis e arranjar um amor que pudesse atingir.
A jovem mariposa, irritada porque ninguém respeitava o que sentia, resolveu sair
de casa. Durante algum tempo, tentou esquecer a estrela e apaixonar-se pela luz
dos abajures, mas o seu coração não conseguia esquecer e resolveu retomar a
caminhada em direção ao céu.
Noite após noite tentava voar o mais alto possível. À medida que ia ficando mais
velha, passou a prestar atenção a tudo o que via à sua volta. Apercebeu-se de
que era a sua estrela quem a empurrava para ver o mundo.
Muito tempo se passou e um belo dia resolveu voltar a casa. Foi então que soube
que a sua mãe, as suas irmãs, primas e sobrinhas, e todas as mariposas que
conhecera já tinham morrido queimadas nas lâmpadas e nas chamas das velas,
destruídas pelo amor que julgavam fácil. A mariposa, embora jamais tenha
conseguido chegar à sua estrela, compreendeu que, por vezes, os amores
impossíveis trazem muito mais alegrias e benefícios do que aqueles que estão ao
alcance das nossas mãos.
Paulo Coelho (Abreviado)
Microconto
— Diz que me ama.
— Aí é mais caro.
Beto Villa. In Os cem menores contos brasileiros do século. Ateliê Editorial.
Microconto
Chorou ao identificar o corpo.
Ao pegar o lenço sentiu, ainda no bolso, a faca.
J. R. Lima
Outra viagem
A mala é bem grande, mas não sei se cabem as pernas.
Arthur Nestrovski. In Os cem menores contos brasileiros do século. Ateliê Editorial.
Microconto
Uma vida inteira pela frente.
O tiro veio por trás.
Cíntia Moscovich. In Os cem menores contos brasileiros do século. Ateliê Editorial.
Os amigos
O senhor Valéry era pequenino, mas dava muitos saltos.
Ele explicava:
— Sou igual às pessoas altas só que por menos tempo.
Mas isto constituía para ele um problema.
Mais tarde o senhor Valéry pôs-se a pensar que, se as pessoas altas saltassem,
ele nunca as alcançaria na vertical. E tal pensamento desanimou-o um pouco. Mais
pelo cansaço, no entanto, do que por esta razão, o senhor Valéry um certo dia
abandonou os saltinhos. Definitivamente.
Dias depois saiu à rua com um banco.
Colocava-se em cima dele e ficava lá em cima, parado, olhando.
— Desta maneira sou igual aos altos durante muito tempo. Só que imóvel.
Mas não se convenceu.
— É como se as pessoas altas estivessem com os pés em cima de um banco e mesmo
assim conseguissem mexer-se — murmurou o senhor Valéry, cheio de inveja, quando
regressava já à casa, desiludido, com o banco debaixo do braço.
O senhor Valéry fez então vários cálculos e desenhos. Pensou primeiro num banco
com rodas, e desenhou-o.
Pensou depois em congelar um salto. Como se fosse possível suspender a força da
gravidade, apenas durante uma hora (ele não pedia mais), nos seus percursos pela
cidade.
E o senhor Valéry desenhou o seu sonho, tão comum.
Mas nenhuma destas ideias era confortável ou possível, e por isso o senhor
Valéry decidiu ser alto na cabeça.
Agora, quando se cruzava com as pessoas na rua, concentrava-se mentalmente, e
olhava para elas como se as visse de um ponto 20 centímetros mais acima.
Concentrando-se, o senhor Valéry conseguia mesmo ver a imagem do topo do cabelo
de pessoas que eram bem mais altas que ele.
O senhor Valéry nunca mais se lembrou das hipóteses do banco ou dos saltinhos,
considerando-as agora, a uma certa distância, ridículas. Porém, concentrado de
tal modo nesta visão, como que de cima, tinha dificuldade em se lembrar da cara
das pessoas com quem cruzava.
No fundo, com a altura, o senhor Valéry perdeu amigos.
Gonçalo M. Tavares, O senhor Valéry e a lógica. Caminho, 2002.
O silêncio
Japão. Primeira metade do século XIV, Xogunato Ashikaga. Um templo
perdido na montanha. Quatro monges zen decidem fazer um
sesshin, um período de meditação intensa, em silêncio absoluto.
Instalam-se em zazen. Vem a noite. O frio é cortante.
— A vela apagou-se! — diz o mais jovem dos monges.
— Não deves falar! É um sesshin de silêncio total, — observa severamente
o monge mais velho.
— Porque falam, em vez de se calarem, como tinha sido combinado? — faz notar, com
humor, o terceiro monge.
— Sou o único que não falou! — exclama com satisfação o quarto monge.
Os melhores contos Zen. Editorial Teorema.
Nós e as palavras
Nós não somos do século de inventar as palavras. As palavras já foram inventadas. Nós somos do século de inventar outra vez as palavras que já foram inventadas.
Almada Negreiros, Obras completas Vol. I. INCM.
1984
— Como é que vai o Dicionário? — disse Winston, erguendo a
voz para se fazer ouvir no meio do barulho.
— Vai avançando devagar — retorquiu Syme. — Estou agora nos adjetivos. É
fascinante.
O rosto iluminara-se-lhe assim que ouvira falar na novilíngua. Arredou para o
lado a marmita, agarrou com uma das delicadas mãos o naco de pão, com a outra o
queijo, e debruçou-se por cima da mesa para poder falar sem ser aos gritos.
— A Décima Primeira Edição vai ser a edição definitiva — disse. — Estamos a dar
ao idioma a sua forma final, a forma que há de ter quando ninguém falar nenhuma
outra língua. Quando chegarmos ao fim, pessoas como tu terão que aprendê-la de
novo. Julgas com certeza que a nossa principal tarefa é inventar palavras novas.
Mas não é nada disso! Estamos é a destruir palavras, dezenas, centenas de
palavras por dia. Estamos a reduzir a língua ao seu esqueleto. A Décima Primeira
Edição não há de conter uma única palavra suscetível de se tornar obsoleta antes
do ano 2050.
Mordeu avidamente o pão e engoliu uma ou duas dentadas antes de continuar a
falar, com uma espécie de paixão pedante. O seu rosto magro e moreno animara-se,
os olhos haviam perdido a expressão escarninha, tornando-se quase sonhadores.
— Coisa magnífica, a destruição das palavras. Claro que a grande quebra é nos
verbos e nos adjetivos, mas também há centenas de substantivos que podem ser
dispensados. E não são só os sinónimos; há também os antónimos. Afinal de
contas, qual a razão de ser de uma palavra que seja simplesmente o contrário de
outra? Cada palavra contém em si própria o seu contrário. Olha “bom”, por
exemplo. Se temos a palavra “bom”, para que é que precisamos da palavra “mau”? “Imbom”
faz o mesmo efeito. Melhor, até, porque é rigorosamente o oposto de “bom”, coisa
que “mau” não é. Ou ainda, se queremos uma versão mais forte de “bom”, que
sentido faz termos toda uma série de palavras vagas e inúteis como “excelente”,
“esplêndido” ou outras que tais? “Extrabom” cobre perfeitamente este sentido; ou
“duploextrabom”, se se pretender um termo ainda mais forte. É claro, nós já
usamos estas formas, mas na versão final da Novilíngua não haverá outras. Não
vês a beleza disto, Winston? É claro que a ideia inicial foi do B. B. —
acrescentou Syme à guisa de esclarecimento.
George Orwell, Mil novecentos e oitenta e quatro. Antígona.
1984
Uma espécie de zelo frouxo perpassou no rosto de Winston ao ouvir o nome do
Big Brother. Mesmo assim, Syme não tardou a detetar nele uma certa falta de
entusiasmo.
— Tu não aprecias verdadeiramente a novilíngua, Winston — disse quase com
tristeza. — Mesmo quando escreves continuas a pensar na velhilíngua. Já tenho
lido algumas coisas que escreves para o Times. Não são más de todo, mas
são traduções. No teu íntimo preferias que se conservasse a velhilíngua, com
toda a sua imprecisão e os seus inúteis matizes de sentido. Não compreendes a
beleza da destruição das palavras. Sabes que a novilíngua é a única língua do
mundo cujo vocabulário diminui ano após ano?
Winston sabia, claro. Sorriu, esperando que o seu sorriso traduzisse um
assentimento, pois não se atrevia a dizer o que quer que fosse. Syme trincou
mais um bocado de pão escuro, mastigou-o rapidamente e prosseguiu:
— Não vês que a finalidade da novilíngua é precisamente restringir o campo de
pensamento? Acabaremos por fazer com que o crimepensar seja literalmente
impossível, pois não haverá palavras para o exprimir. Todos os conceitos de que
possamos ter necessidade serão expressos, cada um deles, exclusivamente por
uma palavra, de significação rigorosamente definida, sendo eliminados e
votados ao esquecimento todos os seus sentidos subsidiários. Na Décima Primeira
Edição já não estamos longe desse objetivo. Mas o processo continuará muito
depois de tu e eu termos morrido. Ano após ano, cada vez menos palavras, e o
alcance da consciência cada vez mais limitado. Mesmo hoje, como é evidente, não
há motivo ou desculpa para se cometer um crimepensar. Simples questão de
autodisciplina, de controlo da realidade. Mas no futuro nem mesmo isso será
necessário. A Revolução ficará completa quando a língua for perfeita. A
Novilíngua é o SOCING e o SOCING é a novilíngua — acrescentou com uma espécie de
exaltação mística. — Já alguma vez pensaste, Winston, que no ano 2050, o mais
tardar, não haverá um único ser humano capaz de entender uma conversa como a que
estamos a ter agora?
George Orwell, Mil novecentos e oitenta e quatro. Antígona.
Viagens das palavras
As palavras têm moda. Quando acaba a moda para umas começa a moda
para outras. As que se vão embora voltam depois. Voltam sempre, e
mudadas de cada vez. De cada vez mais viajadas.
Depois dizem-nos adeus e ainda voltam depois de nos terem dito adeus.
Enfim – toda essa tournée maravilhosa que nos põe a cabeça em
água até ao dia em que já somos nós quem dá a corda às palavras para
elas estarem a dançar.
Almada Negreiros, Obras completas Vol. I. INCM.
Valor das palavras
Há palavras que fazem bater mais depressa o coração – todas as palavras – umas mais do que outras, qualquer mais do que todas. Conforme os lugares e as posições das palavras. Segundo o lado de onde se ouvem – do lado do sol ou do lado onde não dá o sol.
Cada palavra é um pedaço do universo. Um pedaço que faz falta ao universo. Todas as palavras juntas formam o universo.Almada Negreiros, Obras completas Vol. I. INCM.
História das palavras
As mulheres e os homens estavam espalhados pela Terra. Uns estavam
maravilhados, outros tinham-se cansado. Os que estavam maravilhados
abriam a boca, os que se tinham cansado também abriam a boca. Ambos
abriam a boca.
Houve um homem sozinho que se pôs a espreitar esta diferença – havia pessoas
maravilhadas e outras que estavam cansadas.
Depois ainda espreitou melhor: Todas as pessoas estavam maravilhadas, depois não
sabiam aguentar-se maravilhadas e ficavam cansadas.
As pessoas estavam tristes ou alegres conforme a luz para cada um – mais luz,
alegres – menos luz, tristes.
O homem sozinho ficou a pensar nesta diferença. Para não esquecer, fez uns
sinais numa pedra.
Este homem sozinho era da minha raça – era um egípcio!
Os sinais que ele gravou na pedra para medir a luz por dentro das pessoas,
chamaram-se hieróglifos.
Mais tarde veio outro homem sozinho que tornou estes sinais ainda mais fáceis.
Fez vinte e dois sinais que bastavam para todas as combinações que há ao sol.
Este homem sozinho era da minha raça – era um fenício.
Cada um dos vinte e dois sinais era uma letra. Cada combinação de letras uma
palavra.
Almada Negreiros, Obras completas Vol. I. INCM.
As palavras
O preço de uma pessoa vê-se na maneira como gosta de usar as palavras. Lê-se nos olhos das pessoas. As palavras dançam nos olhos das pessoas conforme o palco dos olhos de cada um.
Almada Negreiros, Obras completas Vol. I. INCM.
Sintaxe
Alguns erros de sintaxe no texto que condenava um homem à morte
transformaram esse homem em novo Rei.
Esse novo Rei, que escapara por um triz sintático à pena de morte, decidiu
utilizar outros meios para determinar o enforcamento do antigo rei. Evitando
escrever uma única linha, falou. Porém, explicou-se mal. Os seus próprios
homens, obedecendo às suas palavras, enforcaram-no.
Gonçalo M. Tavares, O senhor Brecht. Caminho, 2004.
A ovelha negra
Num país longínquo existiu há muitos anos uma Ovelha Negra.
Foi fuzilada.
Um século depois, o rebanho arrependido ergueu-lhe uma estátua equestre que
ficou muito bem no parque.
Assim, sucessivamente, de cada vez que apareciam ovelhas negras eram rapidamente
trespassadas pelas armas para que as futuras gerações de ovelhas comuns e
correntes pudessem exercitar-se também na escultura.
Augusto Monterroso, A ovelha negra e outras fábulas.
A galinha vermelha
Tendo uma galinha vermelha encontrado alguns grãos de trigo,
disse aos seus vizinhos de capoeira:
— Se plantarmos este trigo, teremos pão para comer. Alguém quer ajudar-me a
plantá-lo?
A vaca disse que não. O pato, o porco e o ganso também se recusaram a fazê-lo.
— Então, eu mesma os plantarei — disse a galinha.
E assim fez. O trigo cresceu alto e doirado. Quando estava já amadurecido, a
galinha perguntou:
— Quem quer ajudar-me a colhê-lo?
— Eu não — negou-se o pato.
— Isso não faz parte do meu trabalho — disse o porco.
— Tenho demasiados anos de campo! — exclamou a vaca.
— Não posso arriscar-me a perder a ajuda do meu dono — disse o ganso.
— Então, eu mesma o colherei — disse a galinha.
Quando chegou a hora de preparar o pão, a galinha perguntou:
— Quem quer ajudar-me a cozê-lo?
— Só se me pagares! — exclamou a vaca.
— Eu não posso pôr em risco o meu estatuto de doente — disse o pato.
— Eu fugi da escola e nunca aprendi a fazer pão — explicou o porco.
— Se for só eu a ajudar, considero-me vítima de discriminação — resmungou o
ganso.
— Então, eu mesma o faço — disse a galinha.
Assou cinco pães e colocou-os numa cestinha onde todos os podiam ver. De
repente, todos pareciam querer pão.
Mas a galinha anunciou:
— Comerei eu os pães sozinha.
Então, a vaca gritou:
— Os teus lucros são excessivos!
O pato protestou:
— Não passas de uma sanguessuga!
— Exijo direitos iguais! — bradou o ganso.
Quanto ao porco, apenas grunhiu.
Todos os animais pintaram faixas e cartazes e marcharam em protesto contra a
galinha. Chegou, então, o feitor da quinta, que disse:
— Galinha, não podes ser assim egoísta!
— Mas eu ganhei este pão com o meu próprio suor —protestou a galinha.
— É esse, justamente, o princípio da livre iniciativa — continuou o feitor. —
Qualquer um ganha o que quiser. Contudo, segundo as regras da nossa quinta, os
animais mais produtivos têm obrigação de partilhar o que produzem com os animais
que nada querem fazer.
E todos viveram felizes para sempre, incluindo a pequena galinha vermelha, que
sorria e cacarejava:
— Eu estou grata, eu estou grata…
Contudo, a verdade é que a galinha nunca mais fez nada. Nem sequer um pão.
Júlio César Zanluca (Adaptado)
O paraíso imperfeito
— É verdade — disse mecanicamente o homem, sem tirar a vista das chamas que ardiam na lareira naquela noite de inverno — no paraíso há amigos, música, alguns livros; o único mal de ir para o céu é que dali o céu não se vê.
Augusto Monterroso, A ovelha negra e outras fábulas.
As noites de luar
— Uma guerra nuclear:
você é o único sobrevivente. Ou uma epidemia mundial: só você se salva. E aí?
— Aí, depende...
— Depende do quê?
— Depende de onde eu estaria, por exemplo.
— Uma cidade grande. Qualquer cidade grande.
— Só eu? Mais ninguém?
— Só você.
— Bichos?
— Nenhuma forma de vida. Só você. E então?
— Então, depende...
— Do quê?
— Teria eletricidade, por exemplo, para conservar os alimentos? Ou eu viveria só
de não-perecíveis?
— Sem eletricidade. Sem luz. Sem aquecimento. Sem comida congelada. Sem gás.
— Quer dizer que eu teria de fazer fogo esfregando um pauzinho no outro?
— Ou entrando em supermercados e pegando caixas de fósforos.
— É mesmo! Eu poderia entrar onde quisesse e pegar o que eu quisesse, sem pagar
e sem disparar o alarme na saída!
— Exato. E sem ser gravado pelas câmaras de segurança.
— E atravessando a rua fora da faixa!
— Também.
— Estou começando a gostar. Mas, vem cá, eu estaria completamente sozinho?
— Completamente.
— Sem nem um cachorro? Naquele filme do Will Smith, ele tinha um cachorro.
— Sem nem um cachorro. Você seria inteiramente livre.
— Mas solitário.
— Mas livre. Nossos limites são os outros. Você viveria sem os outros. Portanto,
sem limites. Livre.
— Como o Robinson Crusoe na sua ilha?
— Um Robinson Crusoe sem o Sexta-Feira e com um suprimento inesgotável de
fósforos. Exato.
— Como Adão no paraíso.
— Perfeito. Um Adão sem nenhuma perspetiva de Eva. Primeiro e único.
— E as noites de luar?
— O quê?
— E as noites de luar?
— O que tem as noites de luar?
— Iria compartilhá-las com quem?
— Está bem. Esquece. Eu estou lhe oferecendo a liberdade de um mundo vazio, de
um paraíso restaurado, e você vem com pieguice. Esquece.
— Só o que me faltaria seria poder comentar as noites de luar. Um par de ouvidos
para me ouvir, um par de olhos compreensivos para concordar comigo. Só.
— Está bem, está bem. Você pode ter um cachorro.
Luis Fernando Verissimo (2010)
Liberdade de escolha
Era uma livraria que vendia um único livro. Havia 100 mil exemplares numerados do mesmo livro. Como em qualquer outra livraria os compradores demoravam-se, hesitando no número a escolher.
Gonçalo M. Tavares, O senhor Brecht. Caminho, 2004.
A realidade
O senhor Henri disse:
se um homem misturar absinto com a realidade obtém uma realidade melhor.
... podem crer, excelentíssimos ouvintes, que vos falo, não por via de uma
erudição, que sem dúvida alguma possuo em grandes quantidades; mas não, não é
por aí que a minha voz vem.
... a minha voz vem da experiência, caros concidadãos!
... é verdade que se um homem misturar absinto com a realidade fica com uma
realidade melhor.
... mas também é certo que se um homem misturar absinto com a realidade fica com
um absinto pior.
... muito cedo tomei as opções essenciais que há a tomar na vida — disse o
senhor Henri.
... nunca misturei o absinto com a realidade para não piorar a qualidade do
absinto.
... mais um copo de absinto, caro comendador. E sem um único pingo de realidade,
por favor.
Gonçalo M. Tavares, O senhor Henri. Caminho, 2003.
O quadrado
Não sei ao certo em que guerra estou. Todos os dias a esta hora, seis da
tarde, começo a ser cercado por tropas que não vejo. Sinto-as perto de mim, sei
que estão à minha volta, mas não vejo ninguém. Só os tiros, as rajadas, os
rockets. Por vezes pegam no megafone e dão-me ordem de rendição:
— Estás sozinho, dizem. És um soldado sozinho numa guerra que há muito está
perdida.
O problema é que não sei sequer que guerra é. Não sei quem me vestiu esta farda,
nem quem me mandou para aqui e me pôs uma arma nas mãos. Munições não me faltam,
nem rações de combate, nem água. Todos os dias sou reabastecido. Mas também não
sei por quem. Não sei tão pouco quem são os meus, nem por que país ou causa
estou a combater, se é que combato pelo que quer que seja. Defendo este reduto.
É o meu quadrado. Talvez não tenha sentido estar aqui a defendê-lo, mas se o
perdesse eu próprio me perderia. O único sentido, que talvez não tenha grande
sentido, é defender este quadrado. Até à última gota de sangue, como há muito,
na recruta, me ensinaram. Por isso não me rendo. Por mais que me intimem e me
intimidem continuarei a resistir. Não propriamente por razões militares ou
morais. Digamos que por razões estéticas. Um homem não se rende. Talvez seja por
isso que estou aqui, não sei ao certo onde nem desde quando, talvez desde
sempre, no meio de um quadrado, cercado e sozinho, mas não vencido.
Algures alguém me reabastece. Algures sabe que não me rendo.
Todos os dias, pelas seis da tarde, aperta-se o cerco. Todos os dias, à mesma
hora, me coloco em posição. É estranho que não me acertem, verdade seja que
também não sei se alguma vez atingi o inimigo, se assim lhe posso chamar. Chego
a perguntar-me se não é um sonho, se tudo não é apenas um pesadelo e se de
repente não vou acordar.
Seja como for, a guerra continua. Em sonhos ou não, continua. São quase seis da
tarde e sinto que eles se aproximam. Todos os dias é assim, todos os dias
defendo o meu quadrado.
— És um homem sozinho e a tua guerra está perdida, gritam eles.
Sei muito bem
que estou sozinho. Mas enquanto me bater a guerra não está perdida, ainda que se
me perguntassem que guerra é eu não soubesse ao certo responder. Diria talvez
que é a guerra de um homem no meio do seu quadrado. Um homem que se bate, talvez
em sonho, porque tudo se calhar é sonho. Sonho de um sonho, lembro-me de ter
lido algures. Que importa? Sonho ou não, eles aí estão, tenho de defender o meu
quadrado. Não há outro sentido senão este, lutar até ao fim, um homem não se
rende, não seria bonito, seria, aliás, se me permitem, uma falta de educação,
uma grande falta de educação.
Manuel Alegre, O quadrado. Dom Quixote, 2005.
Cartas
O meu tio, o solteiro, era carteiro e colecionava cartas de amor. Mas
cartas dos outros, coitado. Na nossa aldeia nenhuma carta de amor chegou
ao seu destino enquanto ele esteve no ativo.
— É muito fácil distingui-las — dizia. — As esquinas enrolam-se todas ao roçar
nos envelopes e se as lançares ao ar levam muito mais tempo a flutuar do que as
outras.
Ele era como aquelas cartas: passava a vida a flutuar entre histórias de amor
alheias. Às vezes ouvíamo-lo a chorar ou a rir no seu quarto sem motivo
aparente.
— Mas vê lá, isso não é correto — dizíamos-lhe. — Essas cartas não são para ti.
— Não consigo evitá-lo — confessava.
Cada vez que arranjava uma nova, entrava a gritar em casa, louco de alegria.
Reunia toda a família na sala. Fizesse frio ou calor, acendíamos a lareira,
calávamo-nos e esperávamos.
— Isto não está certo — dizíamos baixinho. E ao meu tio: — Lê, lê.
Entardecia sempre durante a leitura. Ele nunca revelava o autor nem o
destinatário.
Depois arquivava-as bem classificadas. Sinceras, afetadas, passionais,
distantes, ardentes e fingidas, todas tinham o seu lugar nas estantes. As de
amor verdadeiro guardava-as debaixo da cama.
Apesar de ser solteiro, o meu tio dormia sempre sobre palavras de amor.
Pablo Aldo, Diógenes. Kalandraka, 2010.
O editor
O editor recusou a publicação de uma obra que um autor desconhecido lhe apresentou, argumentando que um romance de mil páginas teria poucos leitores. O autor reduziu o volume para uma novela de cem páginas mas o editor aconselhou-o a cortar um pouco mais porque isso beneficiaria as vendas. O autor abreviou o trabalho para um conto de dez páginas e o editor elogiou-lhe o raro talento para a síntese, mas informou-o de que a edição do livro teria de ser adiada para uma data mais propícia à procura do mercado. O autor condensou o texto numa única frase e escreveu-a na lápide da campa onde enterrou o editor.
Rui Sousa Basto, Contos do efémero. Opera Omnia, 2011.
Sua excelência
Sua Excelência, o Senhor Governador Musho Keishu, anda em viagem. É
transportado pelos seus carregadores em direção a Kamakura, a grande
capital xogunal. Confortavelmente reclinado nas almofadas de seda, as
mãos pousadas no ventre redondo, que trepida levemente ao ritmo da
liteira, o Senhor Governador dormita um pouco e sonha. A sua guarda
pessoal de nobres samurais rodeia-o e protege-o. Seguem em boa ordem os
servidores, os animais, as bagagens. O Senhor Governador adormece
suavemente, com um sorriso beatífico no rosto.
Nas colinas de Kamakura, num lugar tranquilo que domina simultaneamente a cidade
e o mar, o mestre zen Unkei instalou a sua oficina de estatuária atrás de um
modesto pagode. Esculpe budas em madeira. Recebe também gente de todas as
condições, que solicita os seus conselhos. Unkei é um homem de aparência rude,
taciturno, mas nunca recusa a sua ajuda e todos o veneram.
Nessa manhã precisamente, um jovem monge, que faz serviço de porteiro,
aproxima-se com um ar apressado, segurando religiosamente um cartão de visita
maravilhosamente ornado e decorado. Aí se pode ler: Sua Excelência Musho Keishu,
Governador de Quioto, Conselheiro Particular do Xogum.
— Não tenho nada a dizer a este homem, — diz secamente Unke, que larga o cartão
e retoma o trabalho.
O jovem porteiro, desconcertado e ansioso, volta para anunciar a recusa do
mestre. Apresenta-se humildemente perante o Senhor Governador, confortavelmente
recostado nas suas almofadas de seda.
— O teu mestre não me quer receber? — pergunta Sua Excelência, mais surpreendido
do que irritado. — Deu-te alguma razão?
— Não, meu Senhor.
— E ele sabe que eu posso ordenar que lhe fechem a oficina, que o prendam, a ele
e aos seus, e mandar empalar os seus servidores?
— Piedade, meu Senhor! — exclama o jovem noviço, caindo de joelhos.
Sua Excelência, o Governador, não é um homem mau. Medita um instante,
indolentemente reclinado nas almofadas de seda. À sua volta, a escolta de
samurais põe-se em guarda, alguns têm já a mão no sabre.
— Hum! Hum! — murmura o governador. — Vou tentar uma coisa.
Risca todos os títulos e deixa no cartão apenas o seu nome: Musho Keishu.
— Leva de novo o meu cartão de visita ao teu mestre.
Unkei está a lacar um buda de madeira. Pega no cartão que o jovem monge lhe
estende tremendo.
— Receberei este homem com prazer, — diz.
Os melhores contos Zen. Editorial Teorema, 2002.
A verdade
Uma donzela estava um dia sentada à beira de um riacho, deixando a
água do riacho passar por entre os seus dedos muito brancos, quando
sentiu o seu anel de diamante ser levado pelas águas. Temendo o castigo
do pai, a donzela contou em casa que fora assaltada por um homem no
bosque e que ele arrancara o anel de diamante do seu dedo e a deixara
desfalecida sobre um canteiro de margaridas. O pai e os irmãos da
donzela foram atrás do assaltante e encontraram um homem dormindo no
bosque, e o mataram, mas não encontraram o anel de diamante. E a donzela
disse:
— Agora me lembro, não era um homem, eram dois.
E o pai e os irmãos da donzela saíram atrás do segundo homem e o encontraram, e
o mataram, mas ele também não tinha o anel. E a donzela disse:
— Então está com o terceiro!
Pois se lembrara que havia um terceiro assaltante. E o pai e os irmãos da
donzela saíram no encalço do terceiro assaltante, e o encontraram no bosque. Mas
não o mataram, pois estavam fartos de sangue. E trouxeram o homem para a aldeia,
e o revistaram e encontraram no seu bolso o anel de diamante da donzela, para
espanto dela.
— Foi ele que assaltou a donzela, e arrancou o anel de seu dedo e a deixou
desfalecida — gritaram os aldeões. — Matem-no!
— Esperem! — gritou o homem, no momento em que passavam a corda da forca pelo
seu pescoço. — Eu não roubei o anel. Foi ela que me deu!
E apontou para a donzela, diante do escândalo de todos.
O homem contou que estava sentado à beira do riacho, pescando, quando a
donzela se aproximou dele e pediu um beijo. Ele deu o beijo. Depois a donzela
tirara a roupa e pedira que ele a possuísse, pois queria saber o que
era o amor. Mas como era um homem honrado, ele resistira, e dissera que a
donzela devia ter paciência, pois conheceria o amor do marido no seu leito de
núpcias. Então a donzela lhe oferecera o anel, dizendo “Já que meus encantos não
o seduzem, este anel comprará o seu amor”. E ele sucumbira, pois era pobre, e a
necessidade é o algoz da honra.
Todos se viraram contra a donzela e gritaram: “Rameira! Impura! Diaba!” e
exigiram seu sacrifício. E o próprio pai da donzela passou a forca para o seu
pescoço.
Antes de morrer, a donzela disse para o pescador:
— A sua mentira era maior que a minha. Eles mataram pela minha mentira e vão
matar pela sua. Onde está, afinal, a verdade?
O pescador deu de ombros e disse:
— A verdade é que eu achei o anel na barriga de um peixe. Mas quem acreditaria
nisso? O pessoal quer violência e sexo, não histórias de pescador.
Luis Fernando Verissimo, As mentiras que os homens contam. Dom Quixote, 2002.
Cassetete
A minha namorada foi para polícia sem me dizer nada. Só descobri passados dois anos, e foi porque encontrei um cassetete na cesta das revistas. Posta perante esta prova, ela corou, começou a gaguejar e ficou tão bonita que lhe perdoei. Pôs a farda e era como se me apaixonasse de novo. Beijei-a e ela beijou-me. Fomos juntos para o quarto. Comecei a despir-me. No momento em que tirei os boxers, prendeu-me por atentado ao pudor. Testemunhou contra mim no tribunal e apanhei seis meses. Nunca me foi visitar.
Dan Rhodes, A namorada portuguesa. Gótica, 2004.
Batom
A polícia apanhou a minha namorada a roubar dinheiro a um pedinte
cego. Ela manteve-se em silêncio, mas torturaram-na até confessar que
precisava do dinheiro para comprar um batom.
— Você tem emprego — ladraram-lhe. — Tem com que comprar um batom.
— Tenho, mas só batom barato, que é horrível. Parece sabão e não dura.
Felizmente, um dos interrogadores era mulher.
— Ela tem razão. Uma rapariga tem de confiar nos cosméticos que usa.
Fixaram-lhe uma caução. Quanto a deixaram vir embora, a mulher-polícia,
cheia de pena, enfiou-lhe algo no bolso. Um batom Lancôme. Volcanique.
Fica-lhe a matar.
Dan Rhodes, Anthropology. Canongate Books.
Igualzinha, igualzinha
Margô voltou de Paris com uma bolsa Vuitton. Contou para as
amigas o que passara para comprar sua bolsa Vuitton. Entrara numa fila enorme em
frente à loja Vuitton da Champs-Élysées. No frio! Lá dentro, custara a ser
atendida. Uma multidão. Mas finalmente conseguira.
— E aqui está ela — disse Margô, mostrando a bolsa Vuitton como um troféu.
Foi quando aconteceu uma coisa que a Margô jamais esperaria. A Belinha mostrou a
sua bolsa e disse:
— Igual à minha.
Houve um silêncio constrangido. Depois que se recuperou da surpresa, Margô
sorriu e perguntou:
— Você também esteve em Paris, querida?
— Estive.
— Que inferno, a fila da Vuitton, né?
— Eu não comprei a bolsa na loja da Vuitton.
— Ah, não? Não foi na Champs-Élysées?
— Foi, mas na outra calçada.
— Como?
— Estavam vendendo na rua. Por 19€.
O sorriso da Margô desapareceu. Sua bolsa Vuitton custara exatamente 1900€, na
loja.
— Ah. Imitação — disse.
— Mas é igualzinha.
— Igualzinha, igualzinha, não — corrigiu Margô. — A minha é legítima. A sua é
falsa.
Belinha então propôs que todos examinassem as duas bolsas, para descobrir se
havia alguma diferença. Não encontraram nenhuma.
À noite, na cama com seu marido Oscar, Margô ainda estava furiosa.
— Cachorra!
— O quê, bem?
— A Belinha. Não precisava ter esfregado a bolsa de 19€ na minha cara.
— Mas ela foi honesta. Poderia dizer que comprara a bolsa na loja, igual a você.
Poderia ter mentido.
— Você não vê? Ela me chamou de otária. De nova-rica deslumbrada. De, de...
— Calma. Sabe que essa é uma questão filosófica? — disse Oscar. — Uma imitação
perfeita só deixa de ter o mesmo valor do original quando é descoberta. Dizem
que várias obras atribuídas ao Rembrandt não são dele, são de um falsificador.
Mas continuam nos museus, encantando todo o mundo. Por que estragar o prazer de
ver ou ter um Rembrandt, por um detalhe?
— Oscar, você não está me ajudando.
Hoje, quando alguém comenta a bolsa da Margô e pergunta se é Vuitton, ela
responde.
— Parece, não é? Mas comprei numa calçada da Champs-Élysées. Por 19€!
Luis Fernando Verissimo, As mentiras que as mulheres contam. Dom Quixote.
Como me tornei louco
Perguntas-me como fiquei louco. Aconteceu assim: Um dia, muito antes de os
deuses terem nascido, acordei de um sono profundo e descobri que me tinham
roubado todas as máscaras — as sete máscaras que eu tinha fabricado e usado
nas minhas sete vidas. Corri sem máscara pelas ruas cheias de gente, gritando,
“Ladrões, ladrões, malditos ladrões.”
Os homens e as mulheres riram-se de mim e alguns correram para casa com medo.
E quando cheguei à praça do mercado, um jovem gritou, do alto de um telhado, “Ele é um
louco.” Olhei para cima, para o ver; o sol beijou-me o rosto nu pela primeira
vez. Pela primeira vez, o sol beijou-me o rosto nu e a minha alma inflamou-se de
amor pelo sol, e não mais quis as máscaras. E como num transe, gritei,
“Benditos, benditos são os ladrões que roubaram as minhas máscaras.”
Assim me tornei louco.
E na minha loucura encontrei a liberdade da solidão e a segurança de não ser compreendido, porque
aqueles que nos compreendem escravizam algo em nós.
Mas não devo ficar demasiado orgulhoso da minha segurança. Nem sequer um ladrão
encarcerado está a salvo de outro ladrão.
Kahlil Gibran, The madman.
O elefante Renki
Ryoto, um jovem monge budista, queixava-se de não conseguir manter o
pensamento em repouso.
“O teu pensamento é como um elefante selvagem,” dizia o velho mestre Zen.
Renki era um elefante-indiano que tinha sido capturado aos três anos. Uma pele
cinzenta sem defeitos, presas longas, esguias e pontiagudas, orelhas
triangulares perfeitas, um belo macho que o seu dono, um comerciante de
elefantes domesticados, esperava vender por bom preço ao Senhor do reino.
Amarraram Renki a um poste, atado a uma corda bem sólida. O jovem elefante
começou a debater-se com energia, com fúria, rebelava-se, espezinhava
selvaticamente a terra sob as pesadas patas, urrava que fazia doer a alma. Mas o
poste estava bem amarrado e a corda era grossa. Renki não conseguia
desembaraçar-se nem de um nem de outra. Então, com raiva, mordia o ar, erguia a
tromba e urrava lamentos aos céus.
Quando bruscamente, uma manhã, Renki se acalmou, não puxou mais pela corda, não
maltratou mais o chão sob as quatro patas, não fez mais tremer as redondezas com
os seus gritos. Então o dono soltou-o. Pôde andar de um lado para o outro,
transportando um barril de água, saudando toda a gente, prestando serviço à
comunidade. Estava feliz e livre.
“O teu pensamento é como um elefante selvagem,” disse o velho mestre ao
discípulo. “Fica ansioso, salta em todas as direções e urra aos quatro ventos. A
tua atenção é a corda e o poste enterrado no chão é o objeto escolhido da tua
meditação. Acalma o teu pensamento, captura-o, domestica-o, e conhecerás o
segredo da verdadeira liberdade.”
Os melhores contos Zen. Editorial Teorema, 2002.
Inteligência artificial
Eu sou mais perfeito do que tu, disse o computador ao homem. Projetaste-me, construíste-me e programaste-me, mas eu sou melhor do que tu, disse o computador ao homem. Processas informação, analisas e sintetizas, mas eu sou mais rápido do que tu, disse o computador ao homem. Pensas, refletes e raciocinas, mas eu sou mais inteligente do que tu, disse o computador ao homem. Vives, experimentas e recordas, mas eu memorizo melhor do que tu, disse o computador ao homem. Foste criado à semelhança de Deus e criaste-me à tua semelhança, mas eu assemelho-me mais a Deus do que tu, disse o computador ao homem. O homem escutou o computador com transigência paternal, ergueu-se da cadeira e desligou-o da corrente.
Rui Sousa Basto, Contos do efémero. Opera Omnia, 2011.
CHECK-UP
Este ano pretendo
cumprir rigorosamente a resolução que tomei no fim do ano passado: não mais
tomar resoluções de ano novo. Elas são promessas que fazemos à nossa consciência
em que nem a consciência acredita mais. A minha já estava reagindo com bocejos a
cada juramento que eu fazia para o ano novo.
— Vou começar uma dieta. Séria, desta vez.
— Sei, sei.
— Vou ser tolerante, justo, sóbrio, equilibrado... e arrumar meus livros.
— Tudo bem.
— Fazer exercícios diários. Usar fio dental. Reler os clássicos. Não tudo ao
mesmo tempo, claro.
— Certo, certo.
Mesmo com ar de enfado, minha consciência não deixa de se submeter ao exame
anual que faço nela, sempre nos últimos dias de dezembro. Uma espécie de
check-up moral. Seu estado geral é bom. Não teve grandes provações no ano
passado. Fiz algumas coisas que não devia, não fiz outras que devia, nada grave.
Vamos poder continuar nos encarando – principalmente agora que eliminamos este
ridículo ritual das resoluções de fim de ano da nossa relação. O homem maduro é
o que desiste da virtude impossível para não perder a possível.
Luis Fernando Verissimo, As mentiras que os homens contam. Dom Quixote, 2002.
O PEIXE VERMELHO
Um grande senhor
contratou um mestre muito sábio para educar o filho. Mas o rapaz depressa
mostrou ser um aluno muito distraído, pois o mestre não conseguia que ele
prestasse a atenção a nada do que dizia. Até que um dia o mestre resolveu mandar
fechá-lo numa sala vazia, uma divisão onde não havia mais nada para além de um
aquário cheio de água com um peixe vermelho.
— Vou deixar-te sozinho durante uma hora. — explicou-lhe o mestre — Observa bem
este peixe, porque, quando eu voltar, vais ter de me explicar o que viste.
Ao fim de uma hora, o mestre voltou e perguntou-lhe o que tinha observado. O
rapaz, aborrecido, disse-lhe:
— Nada: um peixe num aquário.
— Foi só isso que viste? Então, vou fechar-te mais três horas para que observes
com toda a tua atenção.
Ao fim de três horas, o mestre voltou a entrar e perguntou de novo ao seu
discípulo o que tinha observado. O rapaz, mais zangado do que antes, disse outra
vez o mesmo: um peixe num aquário.
— Só isso? — disse o mestre — Agora ficas aqui mais seis horas. Vamos a ver se
prestas mais atenção.
Pensando que, se não fosse capaz de dizer nada do que tinha observado, o mestre
era capaz de o mandar ficar fechado naquela sala um dia inteiro, o rapaz pôs-se
a observar atentamente todos os pormenores dos movimentos e evoluções do peixe
dentro de água, como ia de um canto para outro, como ficava parado, como mexia
as barbatanas ou a cauda ou como, inesperadamente, fazia um movimento repentino,
movido não se sabe por que força. Ao fim de seis horas, quando o mestre voltou a
entrar na sala e lhe perguntou o que tinha observado, o discípulo, pondo um dedo
nos lábios, disse-lhe em voz baixa:
— Chiu! Espere, não faça barulho, que eu ainda não acabei!
A volta ao mundo em oitenta contos. Plátano Editora, 2005.
Realidade virtual
Com este aparelho revolucionário, meu caro, pode fantasiar todos os seus desejos: a paixão de uma mulher escultural, uma viagem inesquecível pelo cosmos, o aplauso das multidões, uma montanha de ouro nas mãos – tudo aquilo que ambicionar estará à distância de um toque delicado neste botão branco. É a virtualidade tecnológica, estimado cliente, a cibernética, o futuro, a satisfação plena das expetativas humanas. Em suma: a Felicidade! Mas há mais: o meu amigo só paga – em suaves prestações mensais e por débito em conta – o período de tempo durante o qual desfruta da Felicidade. Se regressar ao modo Realidade – premindo com vigor este botão negro – não tem de desembolsar rigorosamente nada, porque o custo da Realidade, por natureza, já é demasiado elevado. Posso embrulhar?
Rui Sousa Basto, Contos do efémero. Opera Omnia, 2011.
“We tell ourselves stories in order to live.” – Joan Didion