O flautista de Hamelin
Hamelin é uma cidade. Não tão grande como a vizinha Hanôver. No entanto, é um pouco maior do que uma aldeia. Possui uma bela muralha sobre a qual trepa a hera viçosa, uma catedral com altos pináculos de pedra trabalhada com grande pormenor e um magnífico palácio municipal, também chamado «o palácio do relógio», porque, bem no centro da sua fachada, se pode admirar um enorme relógio redondo, cujos ponteiros e números são de ouro puro.
A sul da cidade, passa um rio com uma corrente serena e majestosa: o Veser.
Quando esta história começa – há mais de seis séculos – os habitantes de Hamelin estavam desesperados, porque a cidade tinha sido invadida pelos ratos.
Os ratos desde sempre lá tinham estado e sempre lá haveriam de estar. Enchiam as caves, os esgotos e os subterrâneos. Como tinham o bom gosto de se manter escondidos, não se dava pela sua presença. Mas, de repente, os ratos – ratos grandes, ratos de esgoto e ratos do campo, ratos cinzentos e ratos de água, em suma, todos os ratos possíveis e imaginários – encheram-se de ousadia, saíram dos seus escuros esconderijos e invadiram tudo. As paredes das casas vibravam desde os alicerces e, em toda a sua área, tremiam. Era uma mistura de apitos agudos, de guinchos, de chamamentos.
Ao fim de uma semana, as pessoas já não podiam mais. Dirigiram-se em conjunto ao palácio do município. Sim, aquele mesmo, o do relógio.
Era dia de sessão. Na sala do Conselho não faltava ninguém: nem o presidente da Câmara.
— Parece que estou a ouvir qualquer coisa… um ruído… um barulho na praça… — disse o presidente.
Levantou-se pesadamente do seu cadeirão e abriu uma das janelas da sala.
— Basta, velhos gordalhaços! — ouvia-se gritar. — Têm de encontrar uma solução. Pensam que os elegemos para mandriarem de manhã à noite?
Aterrado com aquela espécie de revolução, o presidente fechou a porta o mais rápido que lhe foi possível, mas não o suficiente para evitar que um chorrilho de maçãs podres se fosse esborrachar nos bancos dos conselheiros.
— Ai de mim, senhores! — exclamou, então, o gordo homenzinho. — Se eu pudesse estar a milhas daqui! «Digam, façam…» É fácil ordenar a uma pessoa que puxe pela cabeça. Mas o que havemos de inventar agora? Tenho uma enorme dor de cabeça… E depois… E depois é quase meio-dia, já estou a sentir um bocadinho de fome. E agora, senhores?
Naquele preciso instante ouviu-se um estranho rumor, proveniente da porta da entrada. Parecia um esfregar contínuo e abafado.
— Quem é? Serão os ratos? Quem quer que seja, entre!
A porta entreabriu-se e, na sala do Conselho, entrou a personagem mais extraordinária que já se viu em Hamelin. Vestia um manto longuíssimo, dividido em dois, metade amarelo e metade vermelho. A sua estatura era alta, magra e seca. Tinha os olhos azuis e penetrantes como alfinetes, a cabeleira longa e fina, vermelho-escura. No seu rosto, sem barba nem bigode, exibia um estranho sorriso.
O homem dirigiu-se lentamente para as cadeiras do Conselho e disse:
— Que vossas Excelências se dignem escutar-me. O acaso quis que eu fosse dotado de um poder mágico. Por esse meio posso atrair todas as criaturas que existem na terra. E quando digo «todas», são mesmo todas. As pessoas chamam-me “o Flautista Mágico”… Se eu libertar a vossa cidade dos ratos dão-me, digamos, mil florins de ouro?
— Só mil? Mas cinquenta mil é quanto te daremos, sim, cinquenta mil! — exclamou o presidente com entusiasmo.
Sem acrescentar palavra, o flautista deu meia volta e saiu para a praça. Erguendo a flauta, franziu os lábios, como fazem os músicos virtuosos. E, antes que o instrumento tivesse entoado três notas, ao longe começou a ouvir-se um murmúrio, como se um exército marchasse a grande distância.
Os ratos! Os ratos saíam! Ratos grandes, ratinhos minúsculos, ratos magros como anchovas, ratos robustos como porcos, ratos castanhos, ratos pretos, ratos cinzentos, ratos ruivos, ratos pomposos marchando compassadamente… ratos jovens e vivos, pais, mães, tios, primos… abanavam os rabos, endireitavam os bigodes e marchavam. Vinham em famílias, em grupos, em pelotões, em multidões, em exércitos.
E todos seguiam o flautista.
O homem avançava de rua em rua sem se voltar para trás, absorto na sua música. E os ratos, atrás, correndo, dançando, arrastando-se uns aos outros. Quando, enfim, o flautista saiu pela porta sul, estava a poucos passos do rio Veser, e aí ficou parado, mas a enorme multidão que o seguia, não. Era um espetáculo extraordinário ver aquela quantidade enorme de ratos a precipitar-se, de mergulho, no rio. Em poucos minutos, em Hamelin não havia nem um daqueles invasores!
De repente, eis que o flautista aparece na praça do mercado. Aproximou-se do presidente e dos seus conselheiros e disse:
— Sim, sim, está tudo bem, mas primeiro, por favor, eu queria os meus mil florins…
— Mil florins?
O presidente perdeu as boas cores que tinha, empalideceu, e os conselheiros, de repente silenciosos, olhavam fixamente para ele, como se o flautista não existisse.
— Bom homem — disse, por fim, o presidente — a praga dos ratos é agora só uma recordação. Os ratos nunca mais hão-de voltar. Claro que queremos recompensar-te. Mas, mil florins! Repara que era uma brincadeira. Portanto, toma estes cinquenta florins, bebe à nossa saúde e vai com Deus!
A cara do flautista ficou negra como o carvão. E disse:
— Não foi brincadeira nenhuma, caros senhores! Avarentos e ingratos como são, não esperem que lhes faça um desconto. E lembrem-se: quem se comporta comigo deste modo, arrisca-se a que eu comece a tocar a flauta com intenções bem diferentes.
— Como!? — gritou o presidente. — Como te atreves, seu vadio horroroso? Vá, vá, toca a tua bela flauta até ela se partir.
Sem acrescentar uma palavra, o flautista voltou-se, colocando, de novo, a sua flauta nos lábios. Começou a caminhar e, antes que tivesse entoado três notas, um alegre murmúrio percorreu a cidade de Hamelin. Eram pezinhos que avançavam velozes, tamancos que ressoavam no empedrado, mãos que aplaudiam, vozes de crianças que falavam alegremente. Todos os meninos e meninas da cidade seguiam em bando, rindo alegremente, a música do flautista.
Ao ver isto, o presidente emudeceu e os membros da assembleia ficaram quietos de espanto, imóveis como pedras. Entretanto, o flautista percorreu a rua principal e encaminhou-se para o Veser, levando atrás de si todas as crianças de Hamelin. E já as pessoas choravam, acreditando que os filhos teriam o mesmo fim que os ratos encantados, quando o homem mudou de rumo, para oeste, em direção à colina de Koppelberg, que domina a cidade.
Chegado ao sopé do monte, parou um instante. Um enorme portal se abriu de par em par, na base da colina, engolindo o flautista e o seu séquito e fechando-se quando a última criança o atravessou.
Nunca mais se encontrou o rasto, nem do flautista, nem das crianças de Hamelin. Não se sabe o que lhes aconteceu.
Se alguém tocar flauta para nos libertar dos ratos, depois de lhe termos prometido alguma coisa, é conveniente mantermos a palavra dada.
Texto: Robert Browning, Os mais belos contos do mundo. Livraria Civilização. (Adaptado) / Ilustração: Lenny Wen
“Keep your values positive, because your values become your destiny.” – Mahatma Gandhi