Um criado esperto
Havia um sujeito que era padre e que tinha por costume não pagar aos
criados, valendo-se de uma esperteza no momento de acertar as contas.
Certo dia bateu-lhe à porta um rapaz que lhe perguntou se precisava de
um criado.
— Quanto queres ganhar?
— Seis moedas por ano.
— Pago-te cinco réis, mas com a condição de fazeres só o que te mando.
— Estou pelo contrato — respondeu o rapaz.
No dia seguinte entrou o criado ao serviço do amo, que o mandou varrer a
rua. O rapaz varreu a rua e deixou o estrume num monte.
— Por que não apanhaste o estrume?
— Porque o patrão só me mandou varrer a rua.
O amo percebeu que tinha ao seu serviço um criado fino. Tentou durante
muito tempo apanhar o rapaz em alguma falta, mas não o conseguiu.
Conferenciou o amo com um compadre muito esperto, que lhe disse:
— Diga amanhã ao seu criado que lhe arranje um almoço muito leve e seja
qual for o almoço diga-lhe que é pesado.
E assim sucedeu. O criado pôs-se a pensar na malícia do patrão e na
maneira como se havia de sair. Depois de matutar algum tempo, veio
pousar-lhe perto um pintassilgo.
Apanhou-o vivo, meteu-o numa terrina, tapou-a com a tampa e esperou pelo
patrão.
Este entrou e pediu o almoço.
— Está dentro dessa terrina.
— Pois tu não sabes que as sopas são alimento muito pesado para mim?
— Veja bem: não são sopas.
O amo levantou a terrina e o pintassilgo safou-se, voando.
— Parece-me que não podia arranjar-lhe um almoço mais leve — disse o
criado.
O amo calou-se e foi conferenciar com o compadre.
— Manda-o amanhã comprar dez réis de arres e dez réis de ais.
E assim sucedeu. O criado pensou por algum tempo e disse consigo: achei.
Foi ao campo com um saco e meteu-lhe dentro uma grande porção de
urtigas; depois comprou dez réis de laranjas e meteu dentro grandes
porções de alfinetes com as pontas para fora, colocando as laranjas por
baixo das urtigas.
Trouxe o saco para casa e disse ao amo:
— Aqui tem o que me mandou comprar. O amo abriu o saco e meteu dentro a
mão.
— Arre! — gritou o patrão, sentindo-se picado nas urtigas.
— Os ais estão mais abaixo.
— Ai! Ai! — disse o patrão desesperado, picando-se nos alfinetes.
— Já vê que cumpri as suas ordens.
Tornou o amo a casa do compadre. Este já não sabia que conselho dar-lhe.
Pensou, pensou, e disse:
— Diga-lhe que é costume da casa jejuar-se três dias seguidos. É
impossível que ele resista a tão grande jejum. E nesta hipótese ele
safa-se e o compadre vê-se livre dele.
O patrão veio para casa e disse:
— É costume da casa jejuar-se três dias seguidos; eu também jejuo.
— Ora, — respondeu o criado — na casa do último patrão jejuei seis dias
e não me custou o jejum.
O criado preveniu-se com uma ceira de figos secos, que o amo reservava
para o mês de maio, e comia os figos quando o amo não estava em casa.
Ao segundo dia ordenou-lhe o amo que aparelhasse duas mulas para
ambos irem a uma feira. O criado aparelhou-as e meteu no forro da
albarda uma boa porção de figos. Ora o amo, como já se disse, era padre
e ia à feira para dizer missa numa capela rural.
Pelo caminho tiveram de atravessar uma grande porção de mato, feito de
estevas. O amo ia adiante e o criado atrás. Este ia comendo o seu figo,
à sorrelfa.
Chegaram a um outeiro, de onde se avistava ainda a casa do padre, e este
fez parar a montada, exclamando:
— Ai que me esqueceu a caixa das hóstias!...
— Se quer eu vou lá; ceda-me a sua mula que é mais ligeira do que a
minha e aqui estou num momento.
— Pois sim, não te esqueças. Diz à criada que é a caixa maior.
O criado montou na mula do patrão. Chegou a casa e disse à criada:
— O patrão ordena que me entregue a bolsa maior do dinheiro, que tem no
baú.
— A maior não pode ser, porque é onde ele tem o dinheiro para pagar a
fazenda que comprou.
— Olhe, ele está além: pergunte-lhe.
A criada subiu à varanda e gritou:
— A maior ou a mais pequena?
— A maior, a maior — respondeu o padre.
A criada desceu e entregou a bolsa maior, que o criado arrecadou. Depois
nunca mais apareceu nem com o dinheiro nem com a mula.
Assim vingou os outros criados que não tinham recebido os seus salários.
Fonte: Fiz das pernas coração, José António Gomes. Caminho. (Adaptado)
“The noblest pleasure is the joy of understanding.” – Leonardo da Vinci