Jornal Escolar AE Muralhas do Minho | 2023-2024
Eu, o lápis azul
O livro 7x25 Histórias da Liberdade, de Margarida Fonseca Santos, reúne um conjunto de contos cujas personagens principais, falando na primeira pessoa, são objetos carregados de simbologia: o semáforo que travou a revolução durante uns minutos, o lápis da censura que, de repente, se vê como um elemento criativo nas mãos de uma criança, a G3, o portão da prisão de Caxias, o megafone... Esta é a história do 25 de Abril na perspetiva dos objetos que testemunharam uma revolução.
Vivo numa secretária atulhada de papéis e bocados de jornal. Quem me usa é um homem não muito popular aqui no jornal. Poucos se dão com ele e, se alguém lhe fala, há sempre um misto de receio, desprezo, falso servilismo e desafio no tom de voz. Sim, eu sei que é difícil imaginar tudo isto junto, mas é exatamente isso que sinto.
Os meus dias são passados a seguir atentamente as palavras das notícias. Muito mais que as notícias em si, eu sei que este homem procura no meio das palavras as mensagens que estão escondidas. Risca de forma impiedosa qualquer indício de apelo à liberdade, de anseios de democracia, de notícias de fugas ou feitos gloriosos. Pelas caras de todas os que aqui trabalham, sinto que sou visto como um lápis criminoso. A minha cor provoca uma sensação de vómito e revolta no autor da notícia censurada. Podia explicar-lhes que pouco tenho que ver com isso, mas não me ouviriam.
No entanto, esta noite, algo aconteceu que alterou por completo a vida deste jornal. As pessoas correm de um lado para o outro, rasgam artigos já censurados, e, agora reparo, o meu utilizador não aparece. Isto é muito estranho!
A excitação é tão grande que percebo que algo mudou. Fala-se na revolução dos cravos, embora eu não saiba o que isso é. Se me estivessem a utilizar, eu podia acompanhar o que se passa, mas hoje ninguém me liga!
As horas vão passando. O rádio está a passar músicas diferentes, há quem as acompanhe assobiando. Prepara-se um novo jornal para o fim do dia e a euforia é contagiante.
A certa altura, entra no gabinete uma criança. Atrás dela vêm dois adultos, conversando.
— Trouxe-a para cá. A escola está fechada.
— Fizeste bem. Ela entretém-se por aí e não incomoda nada.
— Queres brincar com quê, Joana?
— Quero fazer um desenho.
— Senta-te aí, então.
Os dois adultos riem-se.
— A tua filha está sentada na cadeira do demónio, pá!
— Toma lá o lápis azul, pá, o lápis azul! Isto é o máximo! Oh malta! A filha do Sequeira está a desenhar a azul!
As gargalhadas que se ouvem na sala ao lado abafam o rádio. Várias caras espreitam e sorriem para a criança que ensaia uns riscos com o lápis novo. Ela não entende a expressão deles, mas quer garantias para o futuro. Franze o sobrolho e diz:
— Eu quero ficar com este lápis para mim…!
Explode em todos os presentes uma gargalhada feliz.
— É um favor que nos fazes — responde o pai, olhando em volta.
O rádio volta a ouvir-se e Joana, sem hesitações, começa a desenhar.
Santos, M. F. (2008). 7x25 Histórias da Liberdade. Gailivro.
“We have it in our power to begin the world over again.” – Thomas Paine