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A Páginas Tantas

À flor da pele: raça e genética

A ciência confirma que o conceito de raça não tem base genética ou científica.

Há alguns anos atrás, as gémeas Marcia e Millie Biggs foram as protagonistas de uma capa da revista National Geographic. As meninas fazem parte de um grupo muito restrito de irmãos gémeos que têm cores de pele distintas. Na altura com 11 anos, foram escolhidas pela revista para retratar uma edição exclusiva, dedicada ao tema da raça.

Filhas de mãe inglesa e de pai jamaicano, Marcia e Millie têm feições similares, tal como todos os gémeos, mas há algo que as distingue: a cor da pele. Com o seu cabelo loiro e pele clara, Marcia herdou os traços da mãe, enquanto Millie, de cabelo castanho e pele escura, é parecida com o pai.

Os traços de uma criança dependem de inúmeros fatores, como a origem dos antepassados e a genética da pigmentação dos pais. No caso de gémeos com cor de pele diferente, cada bebé se desenvolve, durante a gravidez, num saco amniótico distinto, o que determina as diferenças na sua constituição genética.

Millie diz que “o racismo é quando alguém te julga pela tua cor e não pelo teu eu” e Marcia acrescenta que “pode magoar os sentimentos das pessoas”.

O conceito de raça

O que é a raça, ao certo? O conceito não tem fundamento genético. Após século e meio de investigação sobre o tema, a ciência confirma que se trata de uma construção social criada para nos definir e nos separar.

Na primeira metade do século XIX, o médico Samuel Morton era um dos mais proeminentes cientistas norte-americanos. Vivia em Filadélfia e colecionava esqueletos.

Não se mostrava muito exigente quanto à escolha dos fornecedores. Aceitava esqueletos recolhidos em campos de batalha ou roubados de catacumbas. Um dos seus crânios mais famosos pertencera a um criminoso irlandês − condenado e enviado para a Tasmânia. Morton realizava a mesma operação em cada crânio: enchia-o de grãos de pimenta, que posteriormente decantava para determinar o volume da caixa craniana.

Na opinião de Morton, as pessoas podiam ser divididas em cinco raças, que tinham personalidades diferentes e ocupavam uma determinada posição numa hierarquia divinamente determinada. A “craniometria” de Morton deduzia que os brancos ou “caucásicos” eram a mais inteligente das raças. Um degrau abaixo, embora “engenhosos” e “suscetíveis de serem educados”, encontravam-se os nativos da Ásia Oriental. Seguiam-se os indivíduos do Sudeste Asiático e depois os nativo-americanos. Os negros ou “etíopes” estavam no fim da lista. Durante a guerra civil norte-americana, as ideias de Morton foram rapidamente adotadas pelos defensores da escravatura.

Atualmente, Morton é conhecido como o pai do racismo científico. Em certa medida, ainda vivemos com o seu legado: as distinções raciais ainda moldam a nossa política, os nossos bairros e a nossa noção de identidade.

No entanto, o que a ciência tem efetivamente para nos contar é exatamente o contrário do que Samuel Morton defendia.

Diversidade genética

Samuel Morton convenceu-se de que identificara diferenças imutáveis e hereditárias entre as pessoas, mas na altura em que ele desenvolveu o seu trabalho – pouco antes de Charles Darwin apresentar a sua teoria da evolução e muito antes da descoberta do ADN – os cientistas não tinham noção de como as características eram transmitidas.

Atualmente, os especialistas em genética afirmam que toda a categoria de raça está errada. Quando os cientistas reconstituíram o primeiro genoma humano completo recolheram deliberadamente amostras de indivíduos que se autoidentificaram como pertencendo a raças diferentes. Os resultados permitiram concluir que o conceito de raça não tem fundamento genético ou científico.

A investigação genética revelou verdades profundas sobre os seres humanos. Em primeiro lugar, todos são parentes próximos, partilhando a mesma coleção de genes. No entanto, à exceção dos gémeos idênticos, todos têm versões ligeiramente diferentes de alguns deles. Estudos desta diversidade genética permitiram aos cientistas reconstruir uma espécie de árvore genealógica das populações humanas. E esta revelou a segunda verdade profunda: de uma forma muito concreta, todas as pessoas hoje vivas são africanas.

Todos os não-africanos de hoje, segundo a genética, descendem de alguns milhares de seres humanos que saíram de África há provavelmente 60 mil anos. Uma vez que representavam apenas um pequeno subconjunto da população africana, os migrantes levaram consigo apenas uma fração da sua diversidade genética.

Migrações

A descendência dos indivíduos que saíram de África dispersou-se pelo mundo. Há 50 mil anos tinham chegado à Austrália. Há 45 mil anos estavam instalados na Sibéria e há cerca de 15 mil anos alcançaram a América do Sul. Enquanto se deslocavam para diferentes partes do mundo, formavam novos grupos, que se tornaram geograficamente isolados uns dos outros e adquiriram o seu próprio conjunto de mutações genéticas.

A maior parte dessas especificidades não era útil nem nociva. Por vezes, ocorria uma mutação que se revelava vantajosa num novo cenário. Sob pressão da seleção natural, disseminava-se rapidamente pela população local. A grande altitude, por exemplo, os níveis de oxigénio são reduzidos. Por isso, para as pessoas que se mudaram para as Terras Altas etíopes ou para o Tibete, havia vantagem em possuir mutações que as ajudassem a lidar com a atmosfera rarefeita.

Por vezes, torna-se evidente que a seleção natural favoreceu determinada mutação, mas não se percebe ao certo porquê.

O ADN é frequentemente comparado a um texto, no qual as letras representam bases químicas – A para adenina, C para citosina, G para guanina e T para timina. O genoma humano é formado por três mil milhões de pares-base divididos por vinte mil genes. A mutação maioritariamente responsável pela pele mais clara dos europeus é uma única especificidade num gene conhecido como SLC24A5.

Estudando o ADN extraído de ossos antigos, os especialistas descobriram que a mutação ocorreu na Europa Ocidental há pouco tempo, cerca de oito mil anos, introduzida por migrantes provenientes do Médio Oriente, que também trouxeram uma tecnologia recente: a agricultura. As pessoas que já se encontravam na Europa eram provavelmente castanhas e não brancas. O ADN antigo sugere que muitos desses europeus de pele escura também tinham olhos azuis, uma combinação rara, atualmente.

Vários genes trabalham em conjunto para determinar a cor da pele.

Projeto de Discussão do ADN

Quando falam de raça, os seres humanos parecem referir-se à cor da pele e, simultaneamente, a algo mais do que isso. Este é o legado de pessoas como Samuel Morton, que desenvolveu a “ciência” da raça para satisfazer os seus próprios preconceitos. A ciência atual demonstra que as diferenças visíveis entre as pessoas são acidentes da história. Refletem a maneira como os nossos antepassados lidaram com a exposição ao sol e pouco mais.

O Projeto de Discussão do ADN reuniu um grupo de estudantes universitários com diferentes tons de pele. Semanas antes, tinham preenchido questionários sobre a sua ascendência e fornecido amostras de saliva para testes genéticos. Quem julgavam ser os seus antecedentes?

Uma jovem mulher, cuja família era originária da Índia, ficou chocada por descobrir que parte da sua ascendência era irlandesa. Outra jovem, que se julgava descendente de nativo-americanos, ficou desiludida ao descobrir que isso não era verdade.

Com frequência, a história que os seres humanos contam e aquela que os genes contam não coincidem.

No entanto, o facto de a raça ser uma invenção não a torna menos importante. De uma forma perturbante, a raça ainda determina a perceção das pessoas, as suas oportunidades e as suas experiências. Para as vítimas de racismo, é um fraco consolo dizer que a categoria não tem qualquer fundamento científico.

O sequenciamento genético introduziu novas formas de pensar sobre a diversidade. A ideia de raça é uma construção humana, mas isso não significa que não pertençamos a grupos diferentes ou que não existam variações. A história da nossa ascendência é apenas muito mais complexa do que somos levados a crer.

Fonte: National Geographic, n.º 205 / Ilustração: Bee Johnson
Vídeo: These Twins Show that Race is a Social Construct

“Unless we learn to know ourselves, we run the danger of destroying ourselves.” – Ja A. Jahannes