A Páginas Tantas
A Vida Mágica da Sementinha
Alves Redol
Metidos numa velha arca, desde que o António Seareiro os guardara para
semente, os bagos de trigo tinham acabado por adormecer naquela escuridão de
muitos meses, julgando talvez que estavam esquecidos e ali ficariam a apodrecer
o resto da vida.
Ignoravam, pois, que o Doirado, um boi amarelo todo paciência e poder, já
lavrara com a charrua, no outono, a parte da leiva destinada à semeadura e que o
António preparava a grade com que desfaria os torrões do alqueive, na esperança
de uma boa colheita, tanto mais que já comprara um saco de adubo para revigorar
a terra cansada.
Só quem vivesse a apatia dorminhoca dos bagos resignados poderia entender depois
o entusiasmo e a alegria que rebentaram na velha arca mal a Maria Rita lhe
levantou a tampa e a luz do dia os sacudiu. Até o Serrano — vejam lá!
—, um bago anafado e sempre resmungão, se pôs a saltitar de contentamento, como
se percebesse, o maroto, o destino que lhe reservavam.
E não se enganava, o espertalhão!
Toda desembaraços, que a vida no campo é sempre de labuta, a Maria Rita
tirou-os, às punhadas, para um grande tabuleiro; e, vai daí, foi sentar-se à
porta do casebre para os escolher, mesmo à chapa de um solzinho que era um
consolo de brandura.
Logo as sementes, ainda aturdidas, se puseram a gritar:
— Viva, amigo! Viva! Bom dia!...
— Olá!
— respondeu-lhes o Sol Soalheiro.
— Estiveram a dormir este tempo todo, não? Boa vida, não há dúvida!
— Sempre tens cada uma!
— disse o Amarelo de Barba Preta, um velho grão de trigo muito sabido. — Boa
vida numa escuridão daquelas?
A tocar uma campainha tagarela, que levava pendurada ao pescoço, já o Doirado
arrastava a grade pela leiva, animado por uma cantiga do António Seareiro e pelo
bico de aguilhão, mal o boi parava a olhar a passarada vadia.
Os bagos de trigo perderam a cabeça com aquele espetáculo. Só a Sementinha
estava distraída e indignada, pois metera conversa com a Despedida-de-Verão,
uma flor amarela com pintinhas vermelhas, que lhe dizia, muito ancha da sua
beleza:
— Já viste como sou bonita?... Olha para estes braços todos e para o meu corpo
verde. Que tal?... Repara na minha carapuça vermelha... É linda, não é? Só tu és tão feia,
Sementinha!...
— O que hei de fazer? Nasci assim
— respondeu a Sementinha muito contristada, a choramingar de desgosto. Logo o
Amarelo de Barba Preta, todo ternuras, correu, aflito, para junto dela.
— O que foi, minha pequerrucha?... A Sementinha nem podia falar com tantos
soluços.
— Tem pena de não ser linda como eu
— disse, muito orgulhosa, a Despedida-de-Verão.
— Bonita como tu?
— respondeu o Amarelo de Barba Preta.
— Pois claro que é... E mais bonita ainda porque não é vaidosa.
— Vê-se logo que tens inveja da minha beleza
— disse, um nadinha amuada, a Despedida-de-Verão.
— Inveja de quê? Qualquer dia murchas... E depois?...
Ferida no seu orgulho, a flor voltou costas ao grão de trigo, enquanto este
continuava a animar a Sementinha.
— Deixa lá falar aquela toleirona. Sem a nossa ajuda os homens viveriam pior,
calcula tu! Queres coisa mais bela?
— Mas estamos sempre quietos — lamentou o Serrano gorducho.
— Quietos é como quem diz... Temos andado por todos os caminhos do mundo.
Foi neste momento preciso que um passarico, aproveitando a ausência da Maria
Rita, passou pelo tabuleiro, num voo raso, e roubou a Sementinha com o bico
guloso.
Exercícios
“The noblest pleasure is the joy of understanding.” – Leonardo da Vinci