Página 1 Página 2 Página 3 Página 4 Página 5 Página 6 Página 7 Página 8

A Páginas Tantas

O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá

Era uma vez antigamente, mas muito antigamente, nas profundas do passado, quando os bichos falavam, os cachorros eram amarrados com linquiça, alfaiates casavam com princesas e as crianças chegavam no bico das cegonhas. Hoje meninos e meninas já nascem sabendo tudo, aprendem no ventre materno, onde se fazem psicanalisar para escolher cada qual o complexo preferido, a angústia, a solidão, a violência. Aconteceu naquele então uma história de amor.

A estação da primavera

Quando a primavera chegou, vestida de luz, de cores e de alegria, olorosa de perfumes sutis, desabrochando as flores e vestindo as árvores de roupagens verdes, o Gato Malhado estirou os braços e abriu os olhos pardos, olhos feios e maus. Feios e maus, na opinião geral. Aliás, diziam que não apenas os olhos do Gato Malhado refletiam maldade, e sim, todo o corpanzil forte e ágil, de riscas amarelas e negras. Tratava-se de um gato de meia-idade, já distante da primeira juventude, quando amara correr por entre as árvores, vagabundear nos telhados, miando à Lua Cheia canções de amor, certamente picarescas e debochadas. Ninguém podia imaginá-lo entoando canções românticas, sentimentais.

Naquelas redondezas não existia criatura mais egoísta e solitária. Não mantinha relações de amizade com os vizinhos e quase nunca respondia aos raros cumprimentos que, por medo e não por gentileza, alguns passantes lhe dirigiam. Resmungava de mau humor e voltava a fechar os olhos como se lhe desagradasse todo o espetáculo em redor.

Era, no entanto, um belo espetáculo, a vida em torno, agitada ou mansa. Botões nasciam perfumados e desabrochavam em flores radiosas, pássaros voavam entre trinados alegres, pombos arrulhavam amor, ninhadas de pintos recém-nascidos seguiam o cacarejar de orgulhosa galinha, o grande Pato Negro fazia a corte à linda Pata Branca, banhando-a na água clara do lago. Folgazões, os cachorros divertiam-se saltando sobre a grama.

Do Gato Malhado ninguém se aproximava.

As flores fechavam-se se ele vinha em sua direção: dizem que certa vez derrubara, com uma patada, um tímido lírio branco pelo qual se haviam enamorado todas as rosas. Não apresentavam provas mas quem punha em dúvida a ruindade do gatarraz? Os pássaros ganhavam altura ao voar nas imediações do esconso onde ele dormia. Murmuravam inclusive ter sido o Gato Malhado o malvado que roubara o pequeno Sabiá, do seu ninho de ramos. Mamãe Sabiá, ao não encontrar o filho para o qual trazia alimento, suicidou-se enfiando o peito no espinho de um mandacaru. Um enterro triste e naquele dia muitas pragas foram pronunciadas em intenção do Gato Malhado. Provas não existiam, mas que outro teria sido? Bastava olhar a cara do bichano para localizar o assassino. Bicho feio aquele.

Os pombos iam amar longe dele: havia quase certeza de que fora ele quem matara – para comer – a mais linda pomba-rola do pombal, e, desde então, certo pombo-correio perdeu a alegria de viver. Faltavam provas, é verdade, mas – como disse o Reverendo Papagaio – quem podia tê-lo feito senão aquele sinistro personagem, sem lei nem Deus, tipo à-toa?

As maternais galinhas ensinavam aos pintos cor de ouro como evitar o Gato Malhado em cujas mãos criminosas – segundo afirmavam muitos outros pintainhos haviam perecido (isso sem falar nos ovos que ele roubava dos ninhos para alimentar seu ignóbil corpanzil). Tampouco o Pato Negro queria saber dele pois o gatarrão não amava a água do lago, tão querida do casal de patos. Os cachorros o haviam procurado para com ele correr e saltar. Mas ele os arranhara nos focinhos e os insultara, eriçando o pêlo, xingando-lhes a família, a raça, os ascendentes próximos e distantes.

Um gato mau. Mau e egoísta. Deitava-se pela manhã sobre o capim para que o Solo esquentasse, mas, apenas o Sol subia no céu, ele o abandonava por qualquer sombra cariciosa. Ingrato. Durante muito tempo, uma Goiabeira de tronco carunchoso alimentou a ilusão de que o Gato Malhado a amava e disso se vangloriou perante todas as árvores do parque. Só porque ele vinha, flexível, corpo sensual, rascar-se contra seu tronco nodoso no meio das tardes solarengas. A Goiabeira, que passava por ser uma original, sentiu-se vaidosa com a preferência de um tipo tão difícil e discutido. Procurou um cirurgião plástico, limpou-se de todos os nós que lhe enfeavam o tronco, fez-se bela para o Gato Malhado. E, de tronco liso e limpo, o esperou. Mas quando ele viu que não podia coçar-se naquele tronco sem nós nem reentrâncias, voltou as costas à Goiabeira e jamais sequer novamente a mirou. Durante algum tempo, devido a esta aventura, a Goiabeira foi a vítima predileta das pilhérias (de mau gosto) dos habitantes do parque. Até a Velha Coruja, que morava na jaqueira, riu quando lhe contaram a história.

Devo dizer, para ser exato, que o Gato Malhado não tomava conhecimento do mal que falavam dele. Se o sabia não se importava, mas é possível que nem soubesse que era tão mal visto, pois quase não conversava com ninguém, a não ser, em certas ocasiões, com a Velha Coruja. Aliás, a Coruja, cujas opiniões eram muito respeitadas devido à sua idade, costumava dizer que o Gato Malhado não era tão mau assim, talvez tudo isso não passasse de incompreensão geral. Os demais ouviam, balançavam a cabeça, e, apesar do respeito que tinham à Coruja, continuavam a evitar o Gato Malhado.

Assim vivia ele quando a primavera entrou pelo parque adentro, num espalhafato de cores, de aromas, de melodias. Cores alegres, aromas de entontecer, sonoras melodias. O Gato Malhado dormia quando a Primavera irrompeu, repentina e poderosa. Mas sua presença era tão insistente e forte que ele despertou do seu sono sem sonhos, abriu os olhos pardos e estirou os braços. O Pato Negro, que casualmente o olhava, quase caiu de espanto porque teve a impressão de que o Gato Malhado estava sorrindo. Fixou o olhar, chamou a atenção da pequena Pata Branca:

— Não parece que ele está rindo?

— Santo Deus! Está rindo mesmo...

Jamais o tinham visto rir. A pequena Pata Branca necessitou botar a mão sobre o coração, tão espantada estava com aquele riso na boca feroz do Gato Malhado. Ria pela boca, e, o que era ainda mais inexplicável, ria pelos olhos pardos também.

De repente rebolou-se na grama como se fora um jovem gato adolescente, soltou um miado que mais parecia um gemido. Foi uma emoção geral pelo parque. A Galinha Carijó, que passava perto com sua doirada ninhada de pintos, gritou:

— Ui! — e desmaiou nos braços dos filhos.

O galo Don Juan de Rhode Island veio correndo ver o que tinha acontecido. De todas as galinhas de seu harém, a Carijó era a preferida.

Ajudou-a levantar-se e ia lançar seu canto de guerra e de protesto, igual a uma clarinada, quando mais uma vez o Gato Malhado rebolou-se sobre a grama e miou outro miado... Ai, meu Deus, um miado romântico. Impossível!

Don Juan de Rhode Island engasgou-se e um silêncio total cobriu todo o parque naquela hora da chegada da Primavera. Não se ouvia nem mesmo o arrulhar amoroso dos pombos tal o espanto universal provocado pela surpreendente atitude do Gato Malhado.

— Creio que ele enlouqueceu... — diagnosticou o Pé de Mastruço que tinha fama de ser bom médico.

— Ele está é preparando alguma nova maldade... — sussurrou a Galinha Carijó, refeita do faniquito, arrastando consigo para longe os pintainhos e Don Juan de Rhode Island.

Enquanto isso o Gato Malhado levantou-se, estirou os braços e as pernas, eriçou o dorso para melhor captar o calor do sol subitamente doce, abriu as narinas para aspirar os novos odores que rolavam no ar, deixou que todo o rosto feio e mau se abrisse num sorriso cordial para as coisas e os seres em torno. Começou a andar.

Aconteceu então uma debandada geral. O grande Pato Negro arrastou a pequena Pata Branca para o fundo do lago e assim, num mergulho em que bateu todos os seus recordes anteriores, atravessou para a outra margem onde pôs sua mulherzinha a salvo. Os pombos recolheram-se todos ao pombal, silenciando os arrulhos de amor nos galhos das árvores onde nasciam e se multiplicavam brotos verdes no mesmo minuto transformados em folhas cheias de sombra. Os cães pararam de correr e pular, fizeram como se estivessem muito ocupados em desencavar ossos escondidos. Os botões que começavam a virar flores suspenderam momentaneamente seu trabalho e uma rosa que, apressada, já se abrira, deixou cair todas as pétalas sobre o chão. Menos uma que ficou volteando no ar, ao sabor da brisa.

Toda essa correria fez um certo ruído, despertando a atenção do Gato Malhado. Olhou espantado, por que fugiam todos se era tão belo o parque naquela hora da chegada da primavera? Não havia tempestade, não corria o vento frio derrubando as folhas, a chuva não desabava em lágrimas sobre os telhados. Como fugir e esconder-se quando a primavera chegava trazendo consigo a doçura de viver? Será que a Cobra Cascavel havia voltado, havia ousado retornar ao parque? O Gato Malhado procurou-a com os olhos. Se fosse ela, dar-lhe-ia nova lição para que jamais ali viesse roubar ovos, tirar pássaros dos ninhos, comer pintos e pombas-rolas. Mas não, a Cascavel não estava. O Gato Malhado refletiu. E compreendeu então que fugiam dele, há tanto tempo não o ouviam miar nem sorrir que agora se amedrontavam.

Foi uma triste constatação. Primeiro deixou de sorrir, mas depois encolheu os ombros num gesto de indiferença. Era um gato orgulhoso, pouco lhe importava o que pensassem dele. Até piscou – num gesto um pouco forçado um olho malandro para o Sol, e esse gesto, ainda mais inesperado, fez com que a enorme Pedra, que há muitíssimos anos residia nas proximidades do lugar onde o Gato estava, rolasse correndo para o mato.

O Gato Malhado aspirou a plenos pulmões a primavera recém-chegada. Sentia-se leve, gostaria de dizer palavras sem compromisso, de andar à toa, até mesmo de conversa com alguém. Procurou mais uma vez com os olhos pardos, mas não viu ninguém. Todos haviam fugido.

Não, todos não. No ramo de uma árvore a Andorinha Sinhá fitava o Gato Malhado e sorria-lhe. Somente ela não havia fugido. De longe seus pais a chamavam em gritos nervosos. E, dos seus esconderijos, todos os habitantes do parque miravam espantados a Andorinha Sinhá que sorria para o Gato Malhado. Em torno era a primavera, sonho de um poeta.

Fonte: O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, Jorge Amado. Ilustração: Carybé.

Quiz de escolha múltipla.

“The noblest pleasure is the joy of understanding.” ― Leonardo da Vinci