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A Páginas Tantas

Crime na catedral

França medieval, por volta de 1300

Seria um dia glorioso aquele em que, finalmente, a construção da catedral reconquistaria o orgulho da cidade. Sete invernos antes, a bolsa do cabido local ficara vazia e os trabalhos tinham sido interrompidos. Porém, o bispo Faisant resolvera o problema de uma forma inspirada, ao decidir abrir a cripta, a primeira parte da catedral a ser concluída, ao público. O cálice de Canaã seria aí colocado em exposição e esperava-se que a resposta fosse imediata: de toda a França viriam peregrinos generosos, para rezarem pela realização de milagres.

Depois de sete anos de sacrifícios, depois de sete anos a ver outras cidades a aproximarem-se cada vez mais da conclusão da construção das suas próprias catedrais, os habitantes da cidade ficaram felizes por ver regressar as legiões de canteiros e pedreiros, que se aglomeravam na praça da catedral e reabriam as suas oficinas.

Jean encontrava-se na sua forja quando passou por ali um cortejo de carroças puxadas por bois, deformadas sob o peso da pedra calcária acabada de retirar da pedreira. Havia uma atmosfera quase carnavalesca à volta daquele santo empreendimento, pensou ele. E sorriu.

O avô de Jean tinha sido o mestre ferreiro aquando do lançamento da primeira pedra, meio século antes. Jean, um homem jovem, tinha todos os motivos para esperar estar ainda vivo na altura em que a primeira missa fosse celebrada.

Nas docas, situadas nas proximidades, o bispo Faisant e os seus assistentes superintendiam à descarga das vigas destinadas à construção do telhado, que tinham sido transportadas de barco desde a costa da Escandinávia. Aqui, como em qualquer outro lado, o mestre arquiteto da catedral tinha sido ordenado bispo. Era a melhor forma de assegurar que o edifício estava a ser erigido de acordo com o grande projeto de Deus.

— Um dia glorioso, irmão Jean — disse um homem de vestes castanhas. O frade Germain, amável e corpulento, era membro da casa bispal.

— Realmente glorioso, — replicou Jean. Uma pequena gota de chuva caiu-lhe sobre o nariz, assinalando a aproximação de uma tempestade de primavera.

Na oficina a seguir à de Jean, Robert, o vidraceiro, transpirava com o calor da sua fogueira. O pequeno homem chamou o ferreiro e o frade.

— Vamos ter uma janela de rosácea para provocar a admiração em Rouen... — O vidraceiro fez um esgar malicioso. — Olhem para isto.

O vidraceiro abriu a bolsa e tirou lá de dentro uma mão cheia de luzes cintilantes.

— Imaginem a luz do sol a atravessar estas cores.

Jean examinou os pedaços de vidro finamente cortados e teve de concordar. Nunca tinha visto um vidro tão brilhante.

— Efetivamente, rivalizam com quaisquer pedras preciosas do palácio do bispo.

— Isso cabe-me a mim decidir — disse uma voz, atrás deles.

Jean ficou surpreendido ao ver Pierre de Chantilly. Uma década antes, Pierre, um mestre ourives, tinha trabalhado ali na construção do recipiente de ouro com pedras preciosas incrustadas que continha o cálice de Canaã. Dali, Pierre partira para Bayeux, à procura de trabalho. Alguns anos mais tarde, um incêndio destruiu uma grande parte da catedral da cidade e contou-se, então, uma história escandalosa: dizia-se que tinham descoberto que o ouro das relíquias de Bayeux era falso. Pierre fora acusado de o ter falsificado e fugira de Bayeux, ou pelo menos era isso que se dizia, apenas com um ligeiro avanço relativamente aos homens do bispo.

Jean pensou que os rumores não deviam ser verdadeiros, uma vez que Pierre estava de volta à cidade, para trabalhar nos tesouros da sua catedral.

Pierre admirou os pedaços de vidro colorido e, em seguida, devolveu-os a Robert.

O céu escureceu.

— Valha-me Deus! — suspirou o frade Germain. — O bispo quer o tesouro iluminado e preparado para receber os visitantes. Estava convencido de que ainda tinha umas horas, mas a tempestade vai acelerar os planos dele. Tenho que ir antes que comece a chover.

Germain retirou uma grande chave de madeira de entre as dobras da sua vestimenta.

— Vão-me desculpar, simpáticos senhores. O dever chama-me.

Jean e Robert ficaram a observar o corpulento frade a atravessar a praça, arquejando, em direção à tesouraria, um compartimento de pedra com ligação à cripta e à semiconstruída catedral. Pierre afastou-se também, desaparecendo na parte lateral do edifício.

Grossas gotas de chuva começaram a cair com violência sobre a praça. Com um suspiro, Jean regressou à sua forja, não perdendo de vista o tempo, que ia piorando.

Uma hora depois, foi dado o alarme: o velho frade Germain tinha sido encontrado morto.

Jean dirigiu-se à tesouraria, sob a chuva que continuava a cair, e um dos homens do bispo deixou-o entrar. A porta, apoiada numa só dobradiça, tinha sido arrombada. O velho frade Germain jazia no chão, com uma faca enterrada no estômago e um esgar de surpresa no rosto sem vida. O cálice de Canaã, de ouro cravejado com pedras preciosas, tinha desaparecido do seu lugar. Pierre e Robert encontravam-se junto do corpo.

— Bati à porta para falar com o frade. Ele não respondeu. Tentei abri-la, mas a corrente de segurança estava posta. Pela frincha, vi que a tesouraria tinha sido vandalizada. Fiquei preocupado e arrombei a porta. Quando entrei estava tão escuro que tropecei no corpo — disse Robert.

— Aquele cálice era a minha obra-prima — lamentou-se Pierre. — Gerações de peregrinos teriam vindo aqui ajoelhar-se. Agora, desapareceu. Algum louco ganancioso o roubou, para derreter o ouro e vender as pedras preciosas. O assassino deve ter fugido pela janela.

Jean fitou o vidraceiro e o ourives, com um ar sombrio. Um deles era o assassino e estava a mentir.

Ao observar o calçado seco de Pierre, Jean soube quem tinha assassinado o frade Germain.

Quem é o assassino? Segue as pistas.

Adaptado de: Crimes na história, Hy Conrad. Replicação.
Puzzles policiais: mini-mistérios emocionantes, Jim Sukach. Replicação.

“The noblest pleasure is the joy of understanding.” ― Leonardo da Vinci