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A Páginas Tantas

Lugar de morança

Ziguinchor, Senegal. Chego ao anoitecer. Bois de longos cornos passeiam-se pelas ruas. Procuro um lugar onde comer, onde lavar e refrescar o corpo, onde me possa estender e dormir, e não demoro a encontrar abrigo numa velha casa, com uma larga varanda a toda a volta. O vigor do barro húmido devolve-me o alento. Sento-me no cimento fresco da varanda. Há um rádio ligado e uma voz que canta. Não é em português que aquele homem canta, e no entanto eu percebo-o. As palavras trazem o vago aroma de outras. Parecem utensílios remotos, como os restos de um naufrágio salvados do fundo do mar. Sinto que não as compreendo com o pensamento mas com o sangue.

Viajo habitualmente com um pequeno bloco de capa dura. Anoto nele tudo quanto não tem importância. Aprendi isto com o poeta Manoel de Barros. Por exemplo:

as formigas correm sem destino pela casa
a luz morre nos quartos
o silêncio cobre o chão de uma tristeza em brasa.

Nessa noite janto djeb-u-djen com os do clã de Tourê, o elefante. Durmo. De madrugada, acordo com o grito do muezim chamando o povo às orações. As cegonhas espreguiçam-se nas árvores. O rio Casamansa é um rumor de águas e de aves. Sobre tudo isso, eu volto a ouvir palavras conhecidas, e outras muito esquecidas, tão esquecidas que o meu coração nem se lembrava mais.
Escrevo:

Não farás nada que não possa ser desfeito.
Castelos na areia, desenhos na água, o breve
esboço que a maré arrasa.

Por aqui passaram portugueses. Deixaram o desenho das casas, o sangue disperso, sonhos adormecidos entre palmeiras altas. E esta língua que me recorda alguém que fomos.
Escrevo:

Tudo é irrecuperável, inclusive o que a memória guarda.
Cinzas, a poeira vermelha flutuando sobre a estrada.
Havia um cajueiro ali / morreu? / como se chamava a quitandeira, a velha quitandeira que vinha sempre ao fim da tarde?
Um cão ladrou (ladrava)
Cinzas / poeira vermelha flutuando sobre a estrada.

Sigo em direção à fronteira, a São Domingos, na Guiné-Bissau. E é então que vejo uma placa na berma da estrada, meio oculta entre o capim exuberante, corroída pelo tempo, a humidade feroz, um desgosto antigo:
— Portugal — 30 km.

José Eduardo Agualusa. Fronteiras perdidas.

“We tell ourselves stories in order to live.” – Joan Didion