Sortuda

O livro Se é assim que pensas! de Geert de Kockere reúne catorze conversas muito curiosas entre animais que veem o mundo de um modo original. São diálogos que falam de amizade, saudade, ciúme, confiança, admiração e tédio. O que é óbvio para um nem sempre é óbvio para o outro.

— Sortuda! — disse o Caracol.
— Porquê? — perguntou a Andorinha, sentando-se um minutinho a seu lado.
— Ora, — disse o Caracol — estás sempre a olhar tudo de cima, já eu tenho de olhar tudo aqui de baixo.
Durante toda a sua vida, o Caracol tinha sentido inveja dos pássaros. Principalmente das andorinhas. Elas podiam circular durante horas no céu e ver tudo do alto. Como se o mundo tivesse sido feito por elas e olhassem o seu trabalho lá do céu.
Durante uma vida inteira, o Caracol teve de olhar o mundo de baixo. Olhar para cima, para ver todas as coisas. Todo o tempo. Tantas vezes que até os seus olhos ficaram esticados. Estavam sempre arregalados...
— Ora, — disse a Andorinha — não é assim tão extraordinário olhar tudo de cima. Por vezes, chega a ser até mesmo um problema. Vês tanta coisa! Acabas a fazer perguntas constantemente.
— Bem, — disse o Caracol — mas como é que achas que é olhar tudo de baixo? Sentimo-nos tão pequenos, tão insignificantes... Perde-se a noção das coisas, vês apenas uma pequena parte da realidade. Duvidas de tudo o tempo inteiro.
A Andorinha ficou com pena do Caracol e pensou em ajudá-lo.
— Sabes, — disse a Andorinha — olhar para baixo pode, às vezes, ser muito assustador. Tens a impressão de que a qualquer momento vais cair.
— Sei, — disse o Caracol — mas ter sempre que olhar para cima dá a sensação de que nunca chegas a lugar nenhum.
Hesitante, perguntou então o Caracol:
— Será que só por esta vez poderias...?
Mas não tinha coragem de terminar o pedido.
— O quê? — perguntou a Andorinha — Só uma vez poderia o quê?
— Poderias levantar-me, — respondeu o Caracol — levar-me nas tuas costas e dar uma voltinha comigo. De maneira que eu possa ver as coisas lá do alto. Gostaria tanto de fazer isso pelo menos uma vez!
— É claro — disse a Andorinha.
Pegou no Caracol e voaram juntos sobre a cidade.
— E então? — perguntou a Andorinha quando pôs o Caracol de novo no chão. — E então, como te sentiste a ver tudo do alto?
— Com medo, — respondeu o Caracol — com muito medo.
E enfiou-se na sua casinha, decidido a nunca mais olhar de cima para nada.

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