A Páginas Tantas
Uma questão de azul-escuro
Margarida Fonseca Santos
Atividades
— Todos compreendem a gravidade da situação? — perguntou a professora, enquanto olhava, um a um, para os seus alunos. — Vamos então perceber como podemos resolver e prevenir este problema.
Tudo começara numa tarde demasiado quente de abril. A aula de Educação Física, o momento preferido do Luís, começara logo com corrida em volta do recreio. As gotas de suor escorriam-lhe pela cara, mas ele mantinha-se dentro do seu fato de treino azul-escuro, o mesmo que usara para as aulas no inverno.
A professora Susana sugerira a todos que se desembaraçassem da roupa em excesso, mas o Luís fora o único a ignorar esta frase. E, durante alguns minutos, a professora não insistiu. Contudo, quando a franja morena se colou à testa do rapaz, Susana já não podia deixar de estranhar.
Segurando-o com ternura pelo braço, para poder ajudá-lo a despir a parte de cima do fato de treino, viu-se perante uma expressão de dor e de medo. As mãos do Luís seguravam as mangas para baixo, e a professora tinha a certeza de que o simples facto de lhe segurar o braço causava dor ao rapaz.
Os outros miúdos continuavam um novo jogo sem reparar nesta cena paralela que se desenrolava junto da árvore. O Xavier gritava ordens feito tonto, e os colegas corriam a cumpri-las. A Teresinha fazia muitas perguntas, como sempre, e permitia assim ao Francisco recuperar nessas pausas o fôlego que o peso a mais lhe tirava.
Consciente do que podia encontrar, a professora Susana levantou com cuidado a camisola azul-escura e cerrou os dentes em silêncio — uma marca, também ela azul-escura, preenchia o antebraço do Luís, e podia adivinhar-se o que escondia a outra manga, as calças e a camisola.
Luís sentiu o coração a bater tão forte que uma ligeira tontura o fez vacilar. O pavor estava alojado no seu olhar.
O coração do rapaz voltou a saltar feito doido, mas já não conseguia esconder por mais tempo aquele pesadelo.
Contou...
***
O caminho mais direto entre a escola e o bairro onde quase todos viviam era uma rua sombria e pouco movimentada conhecida por Beco da Agonia. Um nome esquisito, que agora parecia muito bem arranjado. A maior parte dos alunos fugia daquele trajeto, mas o Luís, na tarde de segunda-feira, arriscava ir por lá para não se atrasar — o avô fazia anos, e a família precisava de sair cedo de casa para chegar a tempo à festa.
Ser surpreendido por dois rapazes mais velhos com um ar provocador, fê-lo paralisar. Foi apenas isso que o Luís fez — congelou de medo. O resto estava escrito nos braços, peito e pernas.
Os rapazes tinham-se divertido a ouvi-lo gemer e só tinham parado quando um vulto apareceu no fundo da rua. O Luís podia ter pedido ajuda naquele momento, mas não o fez. E não sabia explicar porquê... Pôs-se de pé, agarrou a mochila e correu até casa. Só parou de correr quando já estava dentro da banheira, onde tomou um banho que só serviu para tirar o pó do corpo. Bem dentro de si, sentia-se sujo pela maldade daqueles rapazes.
Uma questão de azul-escuro, Margarida Fonseca Santos.
“Nothing good ever comes of violence.” – Martin Luther