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A Páginas Tantas

O Cavaleiro da Dinamarca de Sophia de Mello Breyner Andresen

Lá fora, sob a luz azul da lua, Veneza parecia suspensa no ar.

Certa noite, terminada a ceia, o veneziano e o dinamarquês ficaram a conversar na varanda. Do outro lado do canal via-se um belo palácio com finas colunas esculpidas.

— Quem mora ali? — perguntou o Cavaleiro.

— Agora ali só mora Jacob Orso com seus criados, mas antes também ali morou Vanina, que era a rapariga mais bela de Veneza. Era órfã de pai e mãe, e Orso era o seu tutor. Quando ela era ainda criança o tutor prometeu-a em casamento a um seu parente chamado Arrigo. Mas quando Vanina chegou aos dezoito anos não quis casar com Arrigo porque o achava velho, feio e maçador. Então Orso fechou-a em casa e nunca mais a deixou sair senão em sua companhia ao domingo, para ir à missa. Durante os dias da semana Vanina prisioneira suspirava e bordava no interior do palácio, sempre rodeada e espiada pelas suas aias. Mas à noite Orso e as aias adormeciam. Então Vanina abria a janela do seu quarto, debruçava-se na varanda e penteava os seus cabelos. Eram loiros e tão compridos que passavam além da balaustrada e flutuavam leves e brilhantes, enquanto as águas os refletiam. E eram tão perfumados que de longe se sentia na brisa o seu aroma. E os jovens rapazes de Veneza vinham de noite ver Vanina pentear-se. Mas nenhum ousava aproximar-se dela, pois o tutor fizera saber à cidade inteira que mandaria apunhalar pelos seus esbirros aquele que ousasse namorá-la.

E Vanina, jovem e bela e sem amor, suspirava naquele palácio.

Mas um dia chegou a Veneza um homem que não temia Jacob Orso. Chamava-se Guidobaldo e era capitão dum navio. O seu cabelo preto era azulado como a asa de um corvo, e a sua pele estava queimada pelo sol e pelo sal. Nunca no Rialto passeara tão belo navegador.

Ora certa noite Guidobaldo passou de gôndola por este canal. Sentiu no ar um maravilhoso perfume, levantou a cabeça e viu Vanina a pentear os cabelos.

Aproximou o seu barco da varanda e disse:

— Para cabelos tão belos e tão perfumados era preciso um pente de oiro.

Vanina sorriu e atirou-lhe o seu pente de marfim.

Na noite seguinte à mesma hora, o jovem capitão tornou a deslizar de gôndola ao longo do canal.

Vanina sacudiu os cabelos e disse-lhe:

— Hoje não me posso pentear porque não tenho pente.

— Tens este que eu te trago e que mesmo feito de oiro brilha menos do que o teu cabelo.

Então Vanina atirou-lhe um cesto atado por uma fita onde Guiobaldo depôs o seu presente.

E daí em diante a rapariga mais bela de Veneza passou a ter um namorado.

Quando esta notícia se espalhou na cidade os amigos do capitão foram preveni-lo de que estava a arriscar a sua vida, pois Orso não lhe perdoaria. Mas ele era forte e destemido, e sacudiu os ombros e riu. Ao fim dum mês foi bater à porta do tutor.

— Que queres tu? - perguntou o velho.

— Quero a mão de Vanina.

— Vanina está noiva de Arrigo e não há de casar com mais ninguém. Sai depressa de Veneza. Tens um dia para saíres da cidade. Se amanhã ao pôr do sol ainda não tiveres partido eu mandarei sete homens com sete punhais para te matarem.

Guidobaldo ouviu, sorriu, fez uma reverência e saiu.

Mas nessa noite, no silêncio da noite, a sua gôndola parou junto da varanda da casa de Orso.

Texto: Excerto de O Cavaleiro da Dinamarca, de Sophia de Mello Breyner Andresen / Imagem: Rawpixel

Palavras cruzadas

“Great literature is simply language charged with meaning to the utmost possible degree.” – Ezra Pound