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A Páginas Tantas

Fernando Pessoa: o espaço e o tempo de uma vida

Conhecer a vida do homem que foi Pessoa não nos desvia da sua obra, bem pelo contrário. No seu caso, a vida explica a obra como a obra explica a vida. Ambas se contêm mutuamente.

Ilustração: Fernando Vicente

Não houve escritor mais sedentário do que ele. Se excetuarmos o parêntesis constituído pela sua permanência em criança na África do Sul e a viagem da família aos Açores, em 1902, agarrou-se obstinadamente ao local onde nasceu.

Desde o seu regresso definitivo a Lisboa aos dezassete anos, nunca mais deixou a cidade ou os seus arredores imediatos, exceto numa ocasião, para uma breve viagem à província. É através dele que Lisboa entra verdadeiramente na literatura universal.

A capital é antes de tudo o espaço das suas itinerâncias. Mudou de casa pelo menos vinte vezes em quinze anos, até acabar por se fixar em 1920 no prédio em que vivia a família e que, em 1993, passou a ser oficialmente a Casa Fernando Pessoa. Mas, mesmo depois de ter escolhido um domicílio fixo, continuou a calcorrear incansavelmente as ruas, entre o seu quarto e um dos seus escritórios, entre um café e outro, de uma livraria para outra, de uma praça para um jardim público, de uma madrugada nas ruas da Baixa até um pôr do sol à beira do Tejo. Pessoa teve uma relação passional ambígua com a cidade que lhe inspirou algumas das mais belas paisagens do Livro do Desassossego. «Oh, Lisboa, meu lar!»

A sua Lisboa é um labirinto espiritual, mágico e maldito, por onde vagueia à procura de sensações, de impressões, de verdades, de encantamentos e de metamorfoses.

O espaço do seu trabalho e dos seus dias, e simultaneamente dos seus sonhos, é de uma dimensão espantosamente restrita: uma estreita faixa de tecido urbano ao longo da margem do Tejo, do Castelo de S. Jorge, até ao cais de Alcântara, a oeste. Vão apenas quinhentos metros em linha reta desde o seu berço, no Largo de S. Carlos, até ao seu leito de morte no Hospital de S. Luís dos Franceses, no Bairro Alto.

Viveu um pouco mais de 47 anos: cerca de 17.000 dias. Deixou milhares de páginas de versos e de prosa a granel, sem que se pudesse perceber à primeira vista se se tratava de uma obra em construção ou de um campo de ruínas. O seu destino foi «começar depois da morte». Em vida, falhou tudo: carreira, amores, relações sociais, obra. Segundo os critérios habituais era um falhado. No entanto, o seu fracasso é proporcional ao seu génio. Teve uma consciência profunda dos seus fracassos e sofreu atrozmente por isso, mas teve também uma consciência aguda do seu génio.

Foi um solitário, embora não tivesse vivido afastado da sociedade. Aparentemente, era um cidadão vulgar. Os testemunhos dos seus contemporâneos e as numerosas fotografias que se conservaram dele mostram-no sempre bem vestido, impregnado de uma espécie de dignidade tipicamente burguesa.

Através de Campos, Pessoa afirma que todos temos duas vidas: a verdadeira, que sonhámos na infância e a falsa, vivida em convivência com outros. Com efeito, parece ter vivido frontalmente essas duas vidas: sonhador acordado, imerso na multidão solitária sem nela se deixar afogar, simultaneamente ausente e presente na cidade dos homens.

Bréchon, R. (1996). Estranho estrangeiro: uma biografia de Fernando Pessoa. Quetzal.

Quiz: O espaço e o tempo de uma vida

“Às vezes ouço passar o vento; e só de ouvir o vento passar, vale a pena ter nascido.” – Fernando Pessoa