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Jornal Escolar AE Muralhas do Minho | 2024-2025


500 Anos de Camões

Um livro na sala de visitas

Literatura | 10-01-2025

No livro Barbi-Ruivo: o meu primeiro Camões, Manuel Alegre transporta-nos ao universo camoniano e desperta-nos para a beleza e sensibilidade das palavras do poeta.

Edição comemorativa do 3.º centenário da morte de Camões, publicada por Emílio Biel em 1880.

Quando eu era criança, lembro-me de ver na minha casa e nas casas de pessoas de família ou amigas, normalmente na sala de visitas, um livro grande, encadernado, que se destacava de todos os outros. Nem sempre era da mesma cor, mas em todos eles havia o desenho de um homem com uma coroa de louros na cabeça e uma pala num olho. Um dia perguntei que livro era.

— Este livro chama-se Os Lusíadas, é o nosso livro — disse meu pai —, o livro dos portugueses. Foi escrito por Luís Vaz de Camões, o maior poeta português, acrescentou, apontando aquele homem de um só olho.

Às vezes abria o livro e lia para eu ouvir.

Acabei por saber de cor os primeiros versos, antes mesmo de aprender a ler:

As armas e os barões assinalados
Que da ocidental praia lusitana
Por mares nunca dantes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;

Eu não sabia o que aqueles versos queriam dizer, mas gostava da música, uma música que para sempre ficou no meu ouvido. Mais tarde ensinaram-me que a “ocidental praia lusitana” é Portugal, “os mares nunca dantes navegados”, aqueles mares que eram desconhecidos até as naus portuguesas terem revelado o seu segredo, “Taprobana”, o nome antigo dado por gregos e romanos à ilha de Ceilão, atual Sri Lanka, e o “Novo Reino”, aquele conjunto de terras onde os portugueses foram chegando e acabariam por constituir o império português.

A música

Mas o que primeiro e para sempre ficou em mim foi a música. Não só a de Os Lusíadas. Antes de saber ler, também aprendi de cor um soneto, que é um poema de catorze versos, duas quadras e dois tercetos, catorze versos em que Camões conta uma história inspirada na Bíblia e que é, sobretudo, uma história de fidelidade e constância no amor.

Eu subia para cima de uma cadeira, dizia os versos e tinha a sensação de que dentro das palavras havia um ritmo, quase se podia assobiar ou entoar baixinho, era uma forma de música. Mais tarde descobriria que essa música era a música da nossa própria língua. Ou talvez do mar e das marés que estão no ritmo de Camões e da nossa fala.

O ritmo

Havia outros versos que gostava de ouvir. Não os sabia de cor, mas meu pai, que era caçador, sempre que trazia para casa um perdigão, a que chamava “rei do bando”, não se continha:

Perdigão perdeu a pena,
não há mal que lhe não venha.

o ritmo era um pouco diferente, lembrava o das canções e dos fados que se ouviam nas ruas e na rádio. Também se podia assobiar e dava vontade de cantar. Muitos anos depois, um compositor chamado Alain Oulman musicou estes versos que viriam a ser cantados por Amália Rodrigues.

Nessa altura já eu tinha aprendido a diferença entre o ritmo dos versos de Os Lusíadas e dos sonetos e os de “Perdigão perdeu a pena”. Os primeiros são decassílabos, versos de dez sílabas. Os segundos têm a medida tradicional portuguesa, são versos de sete sílabas.

O nosso livro

A minha primeira relação com Camões foi uma relação de culto.

Dizer Camões era a mesma coisa que dizer Poesia e dizer Portugal. Meu pai explicou-me que as figuras máximas de outros povos eram reis, santos, guerreiros. A nossa era um poeta.

— Um país não se faz só com vitórias militares — dizia ele. Faz-se com livros. O território pode ser ocupado, um livro como Os Lusíadas não. Mesmo quando perdemos a independência, não deixámos de ser nós mesmos nem de falar a nossa língua. Já tínhamos Os Lusíadas. E um povo que tem um livro assim nunca deixa de ser um povo soberano. É o nosso bilhete de identidade, é o nosso livro.

E dizia “o nosso livro” com os olhos húmidos, como se fosse o livro sagrado dos portugueses.

Alegre, Manuel (2007). Barbi-Ruivo: o meu primeiro Camões. Dom Quixote. (Abreviado)

“O que há de mais importante em Camões é a qualidade da sua poesia.” – Manuel Alegre