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Jornal Escolar AE Muralhas do Minho | 2024-2025


Os Nortenhos foram ao teatro

Mateus Fernandes, Isis Páris, Leonor Guerreiro e Leonor Saraiva, 12.º A | 30-01-2025

A adaptação teatral de O Ano da Morte de Ricardo Reis demonstra como o teatro pode reinterpretar uma obra literária, adicionando novos elementos para intensificar a experiência estética e dramatúrgica.

Professora de Português, alunos e atores.

“Aqui o mar acaba e a terra principia.” O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago, é um romance que combina literatura, filosofia e história, e que conduz o leitor pelo ambiente sombrio de Lisboa, em 1936, auge do regime salazarista.

O romance relata a história de Ricardo Reis, um dos heterónimos de Fernando Pessoa, que regressa a Portugal após 16 anos no Brasil, encontrando a cidade cinzenta e num estado opressivo, marcado pela censura e repressão do Estado Novo. O simples facto de regressar do Brasil torna Ricardo Reis um alvo da vigilância do regime, refletindo a paranoia na sociedade portuguesa pelo controlo da PVDE, que mais tarde se tornou na PIDE. Ao ser interrogado pela temida PVDE, é observada a desconfiança generalizada que pairava sobre todos os cidadãos, mesmo aqueles sem envolvimento político aparente.

No decorrer da narrativa estão as visitas do fantasma de Pessoa e ainda os relacionamentos com duas mulheres, Lídia, uma empregada forte e determinada, e Marcenda, uma jovem apática e resignada. Com um estilo único, lírico e inovador, Saramago conduz-nos numa reflexão sobre o ser, a morte, o amor e a sociedade, através de um olhar crítico e poético sobre o passado e o presente.

O nosso primeiro encontro no teatro é com um Saramago pensativo, a imaginar o regresso de Ricardo Reis a Lisboa depois da morte de Fernando Pessoa. Pondera todos os cenários: em que café ele vai entrar, em que ruas vai passear e em que hotel vai dormir, o seu pensamento é partilhado diretamente com o público, que acompanha não só o seu raciocínio, mas também o intrincado processo crítico por trás dele e, assim que ele toma a sua decisão, senta-se enquanto o som rítmico dos seus dedos a martelar na máquina de escrever preenche o silêncio.

Ricardo Reis, obedecendo a todas as ordens, como uma marionete, entra em cena sendo seguido por Marcenda. “Mão morta, mão morta que não irás bater àquela porta” é como Saramago a apresenta, referindo-se à sua mão esquerda paralisada que, semelhante a Baltasar no Memorial do Convento, está incapacitada, revelando uma conexão entre as diferentes personagens do autor.

Existem pequenos pormenores que permitem perceber que Saramago é a mão que guia e escreve a história de Reis, como a sincronia dos dois a lerem o mesmo jornal, resmungando ocasionalmente sobre as notícias e debatendo os temas mais relevantes. Fernando Pessoa, inclusive, menciona esse facto, dizendo que Saramago está a fazer a sua pesquisa para tornar a história de Reis o mais verídica possível.

Pessoa aparece quando Reis o vai visitar ao cemitério, pois, nem mesmo morto a sua alma descansa, informando-o que da mesma forma que demoramos nove meses a nascer, também demoramos nove meses a desaparecer completamente do mundo. Ele acompanha o seu heterónimo, aparecendo em diversos momentos da peça, normalmente nos mais inconvenientes, por exemplo, quando está prestes a encontrar-se com uma mulher.

De seguida, somos apresentados a Lídia, a musa dos poemas de Ricardo Reis, que, para grande espanto de Pessoa e do seu heterónimo, é nada mais, nada menos que uma criada do Hotel Bragança na Rua do Alecrim! Fernando rejeita-a, dizendo que a Lídia a quem Ricardo dedicou os seus poemas não poderia ser aquela jovem, pois não tinha classe, nem era de uma boa família, afirmando que Saramago fez de propósito para depreciar a Lídia original, transformando a musa poética numa figura humilde e mundana, a fim de rebaixar a sua grandiosidade.

No entanto, a peça trata de assuntos muito mais importantes: as crises políticas e os problemas que estas trazem, de forma impactante. Com os gritos de desespero da população, os “Tenho fome!” envolvem os sentidos e transportam-nos a um tempo sombrio de sofrimento e pobreza. Até Reis é levado pela PVDE, pois desconfiam de um homem sem ocupação nem ligações familiares ou sociais conhecidas que acabou de regressar do Brasil.

Ricardo Reis confessa que José Saramago é como um segundo pai para si, e este acaba por concordar, admitindo que Reis é como um filho bastardo para ele. Fernando Pessoa, no entanto, intervém, declarando que Saramago, no melhor dos cenários, seria apenas um padrinho para Reis. Nesse momento, começa uma discussão entre Saramago e Pessoa, pois Pessoa expressa o seu descontentamento com a forma como Reis foi ressuscitado, em forma de prosa, e também não gosta que Reis conheça as injustiças do mundo à força, quando ele nunca se envolveu nesses debates. Fernando comenta com Reis “ És de papel, mas com personalidade”. Durante a sua discussão, Pessoa acusa Saramago de o querer amputar, de o tornar vazio ao tirar-lhe os seus heterónimos, porque, sem eles, ele não se sente inteiro, é uma versão empobrecida de si mesmo.

O público, até então imerso na tensão da peça, é inesperadamente surpreendido pelo beijo entre Reis e Lídia e a cena, carregada de intensidade, provoca murmúrios de espanto entre os presentes, porém para aumentar ainda mais a surpresa, ouve-se o comentário: “Vou colocar duas almofadas na cama”. O que parecia ser um breve momento de intimidade dissolve-se rapidamente, pois logo em seguida, o romance entre Reis e Lídia é interrompido, dando lugar a um novo relacionamento de Reis com Marcenda. Esta nova relação está longe de ser bem recebida, sendo acompanhada de forte desaprovação e comentários ofensivos por parte do público, que não esconde o seu desagrado com a escolha de Reis.

A escolha paira no ar, entre Marcenda e Lídia, até que Ricardo toma uma atitude e numa cena que deixou o público na ponta do assento, perguntou:

“— Casas comigo?”
“— Não.”

Os espetadores aplaudem a decisão de Marcenda, mas antes que se recuperem, Lídia revela que está grávida. Reis conta a Pessoa que vai ser pai, e Fernando pergunta qual das duas jovens está grávida, algo que, para Reis, parece absurdo, afirmando que nunca faria nada com Marcenda sem que eles estivessem casados, demonstrando a pouca importância que ele dá a Lídia apenas por ser uma criada. Algo que Lídia sabe, quando diz a Reis que não precisa de perfilhar o seu filho, que ele pode ser órfão de pai, assim como ela o fora.

Antes que a trama tome um rumo definitivo, os nove meses esgotam-se. Reis, com um olhar distante, anuncia sua inabilidade para ler, um dos sintomas da morte. Assim, Fernando Pessoa e o seu heterónimo caminham juntos pela última vez.

Após o término da representação, os alunos reuniram-se com os atores Sara Rio Frio, Lídia Muñoz e Miguel Mendes, para os entrevistarem.

Sendo questionados sobre como foi a preparação para a realização deste espetáculo, a atriz Sara Rio Frio começou por referir que o espetáculo não é recente, tendo já sete anos. Numa fase inicial, os atores estudaram a obra de Saramago, que interpretaram antes de começarem os ensaios. Para representar a sua personagem, Sara inspira-se muito nas mulheres da sua família, principalmente na mãe e na avó, “inspirei-me muito no povo da terra, faz-me lembrar a minha avó, faz-me lembrar a minha mãe”, além de se inspirar nas pessoas das aldeias e campos, já que a sua família é natural do norte de Portugal. Sara menciona também pessoas esquerdistas, que sentem na pele a opressão de um regime conservador, mas que mesmo assim não se rendem e seguem em frente, como inspiração para a personagem do romance, Lídia.

Por outro lado, Lídia Muñoz, atriz que interpreta Marcenda, fala-nos de uma preparação bastante diferente da de Sara. A sua maior dificuldade foi entender como representar a paralisia de braço que a sua personagem tem, apesar de Marcenda já ter sido interpretada por Sara.

Lídia reforça a ideia de Sara de que existe sempre uma preparação e uma leitura inicial da obra original, e menciona também que o facto de Saramago ter sido real ajuda para entender melhor o romance, já que se podem ler diversas obras do autor. Ficamos também a saber que Lídia é uma grande admiradora das obras de Saramago. “Eu adoro Saramago, já li praticamente tudo dele. A preparação foi mais essa, conhecer bem o Saramago, conhecer bem as personagens…”

Num terceiro ponto de vista, temos Miguel Mendes, que começa por referir que esta foi a sua primeira peça com a companhia, e refere ainda que foi chamado por uma colega do antigo elenco para interpretar Fernando Pessoa, já que existem semelhanças entre ambos, desconhecidas até o momento pelo ator: “[...] estavam a pensar em mim porque eu era parecido com Pessoa, e eu nunca tinha reparado! Mas depois eu deixei crescer o bigode e pus uns óculos e percebi”.

Além disso, pelo facto de o seu personagem estar morto, Miguel Mendes encontrou uma liberdade na forma de interpretar Fernando Pessoa, pois podia deambular e fazer o que quisesse. Ou seja, o ator não se baseou tanto no texto, mas sim na expressão corporal que o verdadeiro Fernando Pessoa tinha, através da análise de imagens do poeta para perceber posturas, por exemplo, e, como consequência, toda esta investigação e empenho fez com que Miguel Mendes ganhasse ainda mais afeição por Fernando Pessoa.

O elenco ressalta ainda temas notórios abordados na obra que, apesar de ter sido escrita no século passado, são ainda bastante atuais, não pelos melhores motivos, mas por ainda serem considerados por muitos “tabu”, como questões de aborto, censura, e opiniões políticas divergentes.

A adaptação teatral de O Ano da Morte de Ricardo Reis demonstra como o teatro pode reinterpretar uma obra literária, adicionando novos elementos para intensificar a experiência estética e dramatúrgica. A inclusão de acessórios como o chapéu e os óculos na personagem de Fernando Pessoa, ausentes no romance de Saramago, é um exemplo de como pequenos ajustes podem enriquecer a narrativa cénica. Esta escolha, especialmente no contexto da cena em que Pessoa vigia Ricardo Reis em Fátima, não apenas dialoga com a memória cultural associada ao escritor, como também sublinha a complexa interação entre as personagens, numa mistura da realidade, ficção e espiritualidade que caracteriza a genialidade da obra original e a sua transposição para os palcos. “Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera”.

“Nada fica de nada. Nada somos.” – Ricardo Reis