Jornal Escolar AE Muralhas do Minho | 2024-2025
‘Uma pátria feita de palavras’: o léxico da deslocação em Gaza
Mundo | 06-05-2025
Em Gaza, os deslocados criam uma linguagem de memória, perda e sobrevivência no meio da destruição. Este texto, publicado na imprensa palestiniana em abril de 2025, é da autoria de uma estudante de 21 anos.
Na viagem da deslocação, as famílias não transportam apenas os seus pertences — transportam novas palavras, frases tecidas a partir da dor, do choque e do medo, e uma geografia que se infiltra na linguagem.
Em Gaza, a deslocação não é apenas um movimento físico, mas uma transformação linguística, emocional e existencial. Deu origem a um novo vernáculo — um “Léxico dos Deslocados” — não ensinado nas escolas, mas falado em tendas, debaixo de escadas e nas bermas dos passeios.
Em Gaza, onde as letras se desmoronam sob o peso do sangue, os deslocados forjam uma língua paralela.
As suas palavras são facas que abrem a parede do silêncio global. O seu vocabulário são rios que correm por baixo dos escombros das cidades, regando as raízes das árvores desenraizadas. Como escreveu a poetisa Fadwa Tuqan:
“Eu levava a minha pátria no meu coração...
E assim o coração tornou-se uma pátria.”
O exílio na pátria
O exílio aqui não é uma viagem a terras estrangeiras, mas um estado em que a nossa própria pátria se torna irreconhecível: o exílio não é apenas exterior — está dentro de cada canto da nossa pátria, onde a distância do familiar transforma a dor em lições e histórias.
É uma recordação de que, mesmo dentro do próprio país, a deslocação forçada pode lançar a sua sombra sobre a alma.
O exílio nem sempre é atravessar fronteiras, embarcar num avião num aeroporto distante ou esperar num centro de processamento de refugiados.
Por vezes, o exílio é andar de rua em rua, de bairro em bairro, do norte de Gaza para o seu sul. Um exílio dentro da pátria, mas mais duro, porque obriga a pessoa a passar por cima das suas próprias memórias para sobreviver, a apagar o seu nome da porta de casa só para se manter viva.
A ironia é que os deslocados de Gaza nunca deixaram a Palestina; permaneceram presos numa faixa de terra com uma largura não superior a seis quilómetros.
E, no entanto, sussurram para si próprios:
“Onde é que eu estou? Este não é o meu lugar.”
“Esta rua não é minha... Estes não são os rostos que eu conheço.”
“Até a chamada para a oração aqui soa estranha... O próprio ar é
diferente.”
Os lugares tornam-se familiares apenas no nome, são vazios de pertença. As paredes que não ecoam o nosso riso não nos pertencem.
O exílio dentro da pátria pode ser mais cruel do que no estrangeiro, pois obriga-nos a perguntar: “Onde está a minha casa? Onde está a minha verdadeira pátria?” Quando o lugar onde nascemos nos é roubado, o exílio torna-se uma ferida que nunca cicatriza — uma lanterna que ilumina uma escuridão sem fim.
O exílio não é estar longe da nossa pátria, mas ver a nossa pátria afastar-se de nós, pedra a pedra, memória a memória.
A mala da saudade
Uma mala nunca é apenas um contentor para pertences — é a prova do que não pode ser substituído. Tudo o que podíamos levar connosco era uma mala de saudade, cheia de fotografias, memórias e fragmentos que simbolizam a nossa terra.
É um testemunho de como nos agarramos a pedaços de um passado que o tempo não ousa apagar, onde cada objeto tem um significado para além do espaço e do tempo.
Cada deslocado tem uma “mala da saudade”, medida não pelo seu tamanho, mas pelo peso dos seus símbolos: uma fotografia, uma conta de oração, um livro, um lenço, um perfume antigo. São pequenas coisas que não salvam o corpo, mas salvam a memória.
A mala da saudade não é um simples saco cheio de roupas e papéis. É um museu móvel da existência. Cada objeto que lá está dentro tem um significado mais pesado do que a sua forma: uma chave enferrujada, uma fotografia desvanecida, um pendente cheio de terra natal, talvez um pedaço de tecido de um vestido da mãe, agora desaparecido.
Aqui, onde o valor é medido em memória e não em ouro, a mala torna-se uma pátria em miniatura — carregada ao ombro enquanto a realidade é saqueada.
Nada para além do mar
Uma mala nunca é apenas um contentor para pertences — é a prova do que não pode ser substituído. Tudo o que podíamos levar connosco era uma mala de saudade, cheia de fotografias, memórias e fragmentos que simbolizam a nossa terra.
O mar é frequentemente mencionado nas palavras dos deslocados, não como um lugar para passear, mas como uma solução final. A fuga para o mar não era um desejo de nadar, mas de alcançar a maior extensão possível de céu, de ar e de uma pequena hipótese de vida.
Em Gaza, onde a terra encolhe e as paredes explodem com tiros, o mar torna-se o último limiar da vida, não uma fuga dela. Já não é a extensão azul que os poetas cantam; agora, é uma muralha de água que sitia a cidade por três lados, enquanto a morte se aproxima pelo quarto.
No léxico da deslocação, “não há nada para além do mar”.
O mar é a nossa última fronteira. Quando uma criança pergunta ao pai: “Para onde é que vamos se bombardearem a tenda?”, a resposta é sempre: “O mar... Não há nada para além dele.”
É a nossa única direção: nos mapas dos deslocados, não há setas a apontar para norte ou para sul — apenas uma, a apontar para oeste, onde as ondas se recusam a ser um refúgio.
Este léxico é o novo batimento cardíaco de Gaza: uma pátria feita de palavras que se recusa a morrer.
Skaik, F. (2025, abril 27). ‘A Homeland Made of Words’: The Lexicon of Displacement in Gaza. The Palestine Chronicle.
Fatima Skaik tem 21 anos e é estudante de Arquitetura na Universidade Islâmica de Gaza.
“When the whole world is silent, even one voice becomes powerful.” – Malala Yousafzai